O contencioso internacional e o Novo CPC
Lucas Sávio Oliveira e Mariana Resende
Transpor fronteiras nunca foi tão fácil. Um clique basta para se fazer negócios em outros países. Famílias se formam com membros de nacionalidades distintas como nunca antes visto, nem sempre mantendo domicílio ou tendo filhos no Estado de origem de um dos cônjuges. A aquisição de bens no exterior é uma constante. Em todas essas situações, a possibilidade de percalços que fogem à possibilidade de solução por quem nelas se envolve é uma realidade, não raramente gerando litígios, que deverão ser resolvidos por meio da atuação de tribunais em um dos Estados de alguma forma envolvidos. Não à toa, o legislador teve como uma de suas preocupações a modernização das disposições que tratam sobre o contencioso civil internacional no Novo Código de Processo Civil, o que envolve tanto questões sobre jurisdição internacional quanto relativas à cooperação internacional (1).
De saída, uma das mudanças mais significativas está na precisão conceitual e topológica adotada. Com um título no Novo CPC inteiramente dedicado aos limites da jurisdição nacional e à cooperação internacional, inserido no livro que trata justamente da função jurisdicional, deixou-se de lado a errônea menção à competência internacional do juiz, como estabelecido no Código anterior (2).
Ao se deparar com um caso com conexão internacional, seja em razão do domicílio ou sede das partes, seja em razão do objeto em litígio, o local de constituição da obrigação ou mesmo de ocorrência do fato, para citar apenas algumas possibilidades, a primeira pergunta que deve fazer o julgador não é se ele tem competência para julgar, mas sim se a jurisdição a ele conferida alcança o plano internacional. Não se trata de uma questão de distribuição interna de funções jurisdicionais, de um pressuposto de validade, mas sim de uma condição de existência do processo, da possibilidade de exercício da função jurisdicional, com aplicação do direito material para a resolução do conflito.
Em 1976, portanto 3 anos após a promulgação do revogado Código Civil, Donaldo Armelin já explicava que “por se tratar de normas que cuidam da atuação de um poder inerente à soberania nacional e não da distribuição interna das faculdades específicas, imanentes a tal Poder, tais normas regram, em verdade, a atuação de jurisdição no plano internacional e não a competência dos órgãos componentes daquele poder, no mesmo plano” (3).
Assim, os arts. 21 a 25 regem os limites da jurisdição nacional no Novo CPC, trazendo importantes inovações com relação ao que se tinham até a sua entrada em vigor.
Além das hipóteses já conhecidas de jurisdição relativa trazidas no art. 21, ou seja, que abrem a possibilidade para que juízes de outros Estados decidam o caso, com garantia de posterior reconhecimento e execução da sentença estrangeira no Brasil, quais sejam estar o réu domiciliado no Brasil, ser o Brasil o local de cumprimento da obrigação ou o fundamento da ação ser um ato ou fato ocorrido ou praticado no Brasil, o art. 22 traz outras hipóteses que merecem destaque.
Passou a ser expressa a possibilidade de que o juiz nacional decida ações de alimentos quando o credor tiver domicílio ou residência no Brasil ou o réu mantiver vínculos no Brasil, tais como posse ou propriedade de bens, recebimento de renda ou obtenção de benefícios econômicos. Ações decorrentes de relação de consumo também poderão ser julgadas pelo juiz brasileiro, desde que o consumidor tenha residência ou domicílio no Brasil. Para completar, caso as partes, tácita ou expressamente, se submeterem à jurisdição brasileira, terá o juiz nacional o poder para decidir o caso.
A última das alterações é um grande avanço do Brasil e significa a afirmação do princípio da autonomia da vontade para a eleição de foro, trazendo segurança jurídica às partes litigantes. De forma a resguardar seus interesses, e evitar que, em caso de litígio, uma das partes leve determinado litígio a ser resolvido em um Estado que, de alguma forma, lhe traga algum benefício em detrimento do direito da outra, o chamado forum shopping, é extremamente comum que as partes em um contrato aloquem custos e riscos escolhendo no próprio contrato o foro competente para resolver seus litígios. Caso a escolha se dê pelo Brasil, não haverá qualquer possibilidade de negativa pelo juiz nacional, o mesmo ocorrendo caso o réu não conteste a propositura da ação aqui se a eleição tiver sido diversa, operando a prorrogação da jurisdição. Em caso de contestação, o juiz respeitará a escolha das partes, conforme definido no art. 25.
Ressalte-se que o estabelecimento da liberdade para eleição de foro confere coerência ao ordenamento jurídico nacional. A escolha de foro já era permitida entre os Estados-parte do Mercosul em razão do Protocolo de Buenos Aires (4), estabelecendo verdadeira ilha de autonomia em meio à insegurança de que escolhas fora desse âmbito fossem desconsideradas sumariamente pelo judiciário nacional. Além disso, a escolha por arbitragem, que da mesma forma significa a eleição pelas partes de jurisdição diversa à do Estado brasileiro, já era plenamente aceita desde a promulgação da Lei de Arbitragem (5), ou seja, há quase 20 anos, vindo a ser ratificada com a adesão do Brasil, em 2002, à Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (6).
A autonomia para a eleição de foro não é, porém, absoluta já que foram mantidas hipóteses em que a jurisdição nacional será exclusiva. Isso ocorrerá, nos termos do art. 23, quando o litígio for relativo a imóveis situados no Brasil e, também, em determinados casos sucessórios e de dissolução de vínculos conjugais. O antigo art. 89, I tratava dessas questões com uma redação que gerava dúvidas, estabelecendo competência para “proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional”. Além de deixar dúvidas sobre a aplicação da disposição em caso de partilha de bens em casos de separação, divórcio ou dissolução de união estável, a vinculação à residência no estrangeiro, a qualquer tempo, do autor da herança, era motivo de não poucos questionamentos.
Mais claros, os incisos II e III do art. 23 do Novo CPC estabelecem a jurisdição do juiz nacional em matéria de sucessão hereditária, quando se tiver que proceder à confirmação de testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional; e, em divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, para proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional.
Ao tratar da litispendência internacional, também foi mais feliz a novel legislação. Passou a ser evidente o fato de que, ainda que a regra geral seja a de que a ação proposta perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, caso o Brasil firme um acordo bilateral ou seja parte de tratado internacional que reconheça a litispendência internacional, a autoridade judiciária brasileira estará impedida de conhecer da mesma causa e das que lhe são conexas. Além disso, ainda que fosse uma consequência lógica, passou a ser expressa a possibilidade de homologação de sentença estrangeira mesmo que exista pendência da causa perante a jurisdição brasileira.
Outra importante inovação do Novo CPC é a efetiva positivação da cooperação jurídica internacional. À diferença do antigo Código de Processo Civil, que versava de maneira genérica apenas sobre cartas rogatórias, o Novo CPC traz um capítulo exclusivo sobre a forma de colaboração processual entre o judiciário nacional e os judiciários estrangeiros.
A cooperação internacional é uma prática comum e necessária entre os judiciários de diferentes Estados. Apesar de ser algo que já ocorria no Brasil, muito em função de acordos bilaterais e tratados dos quais o Brasil é parte, ou mesmo em função da reciprocidade em suas relações internacionais, operando pelo meio diplomático, faltava sua sistematização, ainda que mínima, em uma lei de caráter geral.
O Novo CPC oferece diretrizes para a cooperação internacional. Nos termos do art. 27, a cooperação terá por objeto qualquer medida judicial ou extrajudicial não proibida pelo Direito pátrio, incluindo-se assim a citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial, homologação e cumprimento de decisão, assistência jurídica internacional, dentre outras.
O legislador preocupou-se ainda em regular dois procedimentos de cooperação: a tradicional carta rogatória e o ainda pouco utilizado auxílio direito. A diferença entre ambos é que neste, o objeto da assistência não decorrer de diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil.
O maior cuidado do legislador ao regular os limites à jurisdição nacional, bem como ao incluir no Novo CPC a cooperação internacional não somente traduz o devido reconhecimento da importância da matéria, mas, principalmente, cumpre um caráter pedagógico. O amadurecimento do contencioso internacional e da assistência judiciária entre Estados exige uma maior conscientização dos judiciários, que supera a positivação da matéria.
Lucas Sávio Oliveira e Mariana Resende
Advogados da equipe de Consultoria Internacional e Contratos do VLF Advogados.
(1) Os limites da jurisdição nacional são tratados nos arts. de 21 a 25 e a cooperação internacional nos arts. de 26 a 41 da Lei 13.105, de 16 de março de 2015, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm, acesso em 10 de março de 2016.
(2) Ressalva-se que o elogio só é cabido quanto aos nomes dados aos títulos e capítulos, já que os textos dos artigos ainda fazem menção à competência do juiz, chegando o art. 25 a falar expressamente em “competência internacional exclusiva”
(3) ARMELIN, Donaldo. Competência internacional. In. Revista de Processo. Vol. 2. Abril, 1976. p. 131.
(4) Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, concluído em Buenos Aires, em 5 de agosto de 1994, promulgado no Brasil pelo Decreto n° 2.095, de 17 de dezembro de 1996. O texto do Protocolo está disponível em http://www.camara.gov.br/mercosul/protocolos/buenos_aires.htm, acesso em 10 de março de 2016.
(5) Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9307.htm, acesso em 10 de março de 2016.
(6) Promulgada pelo Decreto n° 4.311, de 23 de julho de 2002, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4311.htm, acesso em 10 de março de 2016.