Possibilidade de aquisição originária de propriedade mediante ato notarial: a usucapião extrajudicial introduzida pelo Novo CPC
Marina Caldeira, Patrícia Bittencourt e Marcus Drumond
A usucapião é um meio originário de aquisição de propriedade, de bens móveis e imóveis, a partir da comprovação da posse contínua do bem a ser usucapido, de acordo com os requisitos legais próprios a cada tipo de pretensão.
Com fundamento primordial na segurança jurídica, a Usucapião é instituto controverso, porém necessário, no ordenamento jurídico, na medida em que valida e regulariza ato que, em razão do decurso de tempo, já possuía plena eficácia.
Até a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (“Novo CPC”), a declaração da usucapião dependia exclusivamente de reconhecimento judicial, conforme determinado no Código Civil de 2002 (“CC/02”), independentemente da existência de controvérsia. Entre diversas outras novidades, o Novo CPC surpreendeu ao trazer, em seu art. 1.071, reforma à legislação de registros públicos, introduzindo o art. 216-A, a fim de regulamentar o procedimento da usucapião extrajudicial.
A novidade, que é restrita à usucapião de bens imóveis, independentemente de se tratar de usucapião ordinária, extraordinária ou especial, se adequa perfeitamente à tendência de simplificação dos procedimentos, especialmente aqueles nos quais não há matéria litigiosa. Ainda assim, a análise dos seus requisitos revela uma preocupação com a comprovação documental, assim como com os terceiros eventualmente interessados.
Por exemplo, a exigência comprobatória da usucapião no Código de Processo Civil de 1973 (“CPC/73”), que se restringia à apresentação de planta do imóvel que se pretendia usucapir, na usucapião extrajudicial é substituída por acervo documental muito mais robusto, impondo ao interessado que junte ao pedido: a ata notarial atestando o tempo da posse, conforme o caso; o memorial descritivo do imóvel; as certidões negativas dos distribuidores da comarca de situação do imóvel e do domicílio do requerente; e justo título ou quaisquer outros documentos que substanciem a posse do requerente.
Assim como no procedimento especial de usucapião previsto no CPC/73, o procedimento extrajudicial de aquisição de propriedade prevê a notificação de interessados, confinantes e da fazenda pública, e o mais interessante é que o silêncio de qualquer dos envolvidos é interpretado como discordância do pedido.
Tal interpretação, que é exatamente oposta à regra geral do CC/02 (“Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”), é de suma importância à proteção dos terceiros interessados, titulares de direitos averbados na matrícula do imóvel a ser usucapido, e confinantes da área cuja usucapião se pretende, especialmente na esfera extrajudicial, face o potencial prejudicial do registro da usucapião à revelia de tais pessoas
Se houver incerteza quanto ao atendimento dos requisitos ou mesmo das condições para prosseguimento com o registro da usucapião extrajudicial, o Novo CPC autoriza a instauração do procedimento administrativo de dúvida regulamentado pela Lei nº 6.015/73 (“Lei de Registros Públicos”), para submissão da questão ao crivo do judiciário.
Ao final das diligências, se a documentação estiver em ordem, mediante consentimento expresso dos interessados, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as respectivas descrições apresentadas no pedido, sendo, inclusive, permitida a abertura de matrícula, se necessário.
Por outro lado, se a documentação não for regularizada conforme as exigências descritas no art. 216-A da Lei de Registros Públicos, inclusive em caso de discordância dos interessados, o pedido será rejeitado pelo oficial de registro de imóveis, o que por sua vez não impede o ajuizamento de ação de usucapião.
Destaca-se que, na hipótese de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião por algum dos confinantes do imóvel, ou por algum dos entes públicos ou terceiro interessado, a documentação será encaminhada pelo oficial de registro de imóveis ao juízo da comarca de situação do imóvel, devendo o requerente emendar o pedido para adequá-lo ao procedimento judicial ordinário. De acordo com o Enunciado 368 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “[a] impugnação ao reconhecimento extrajudicial da usucapião necessita ser feita mediante representação por advogado” (1).
Conclui-se, portanto, que a usucapião extrajudicial consiste em procedimento inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Novo CPC, consagrando o contexto de simplificação dos procedimentos não litigiosos, na mesma linha do que já havia ocorrido, por exemplo, com os processos de divórcio e inventário, em reformas processuais anteriores. A alternativa é louvável, na medida em que objetiva afastar do poder judiciário os casos nos quais as partes não apresentam conflitos de interesse, que realmente não justificam a necessidade de intervenção estatal. Parece adequada, ainda, a impossibilidade de prosseguimento da usucapião extrajudicial em caso de impugnação ou mesmo diante da ausência de concordância expressa dos interessados, na medida em que, de acordo com o art. 5º, XXXV, da Constituição da República, “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Marina Caldeira
Advogada da equipe de Contencioso Empresarial do VLF Advogados.
Patrícia Bittencourt
Advogada da equipe de Contencioso Empresarial do VLF Advogados.
Marcus Drumond
Estagiário da equipe de Contencioso Empresarial do VLF Advogados.
(1) O enunciado foi aprovado no IV Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis, ocorrido em Belo Horizonte nos dias 5, 6 e 7 de dezembro de 2014. A versão consolidada dos enunciados por ser acessada em http://www.portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf