Principais alterações do Decreto nº 11.948/2024 impulsionam eficiência e transparência nas parcerias com a sociedade civil
Bruno Fontenelle e Maria Tereza Fonseca Dias
A Lei nº 13.019/2014 estabeleceu o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (“OSCs”), em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação. Como Marco Regulatório das OSCs, a Lei passou a ser denominada MROSC e estabeleceu regime jurídico próprio destas parcerias, diverso do regime da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, à época, a Lei nº 8.666/1993, substituída pela Lei nº 14.133/2021.
Fruto do diálogo com as entidades do setor sem fins lucrativos e de debates no Congresso Nacional, a vigência e aplicação da Lei foi adiada até a expedição do Decreto nº 8.726, de 27 de abril de 2016, que a regulamentou.
As principais mudanças do MROSC, na época, foram: o enquadramento da OSC como entidade sem fins lucrativos; os tipos de parcerias possíveis de serem firmados (termo de colaboração, termo de fomento, acordo de cooperação), a obrigatoriedade de chamamento público, requisitos e exigências para a formalização das parcerias, transparência e prestação de contas (1).
Em síntese, a própria Lei, em seu art. 5º, estabeleceu como fundamentos do regime jurídico instituído a gestão pública democrática, a participação social, o fortalecimento da sociedade civil, a transparência na aplicação dos recursos públicos e a observância dos princípios da administração pública.
O Decreto nº 8.726/2016 vinha sendo aplicado desde então, até a edição do Decreto nº 11.948/2024, publicado no último dia 12 de março. O novo decreto promoveu mudanças importantes nas diferentes fases da gestão de parcerias: planejamento, seleção, celebração, execução e prestação de contas.
As alterações do Decreto nº 8.726/2016 resultaram de esforço contínuo para aprimorar as parcerias entre a administração pública e as OSCs. A introdução de novas regras para o chamamento público, o aperfeiçoamento das condições contratuais na celebração, a busca por eficiência na execução e o foco no controle por resultados durante a prestação de contas são passos significativos em direção a uma gestão mais eficaz e responsável dos recursos públicos, e mais coerentes com a Lei nº 13.019/2014.
A revisão do regulamento decorre de amplo processo de diálogos dentro e fora do Governo. A consulta pública envolveu dezenas de atividades em diferentes estados, além do canal online que recebeu mais de 400 contribuições e resultou em 170 alterações. O Grupo Técnico de Trabalho, coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, que contou com as participações imprescindíveis do Ministério da Gestão e Inovação, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União e Casa Civil, construiu tanto a proposta que foi submetida à consulta pública quanto a minuta final do decreto. No total, 19 ministérios participaram da iniciativa. Passa-se a destacar as principais alterações promovidas.
A nova redação dada ao artigo 4º retoma o protagonismo do Governo Federal na coordenação da implementação da Lei nº 13.019/2014, com a responsabilidade de apresentar critérios orientadores para definição de objeto, metas, custos e indicadores de avaliação de resultados.
Nas regras de chamamento público, os ajustes promovem maior inclusão, tratando de medidas de acessibilidade e de roteiros precisos e simplificados para orientar a elaboração das propostas das OSCs. O §6º do artigo 9º prevê que o edital poderá estabelecer critérios de focalização, visando a redução das desigualdades e a inclusão de diferentes públicos. Já o §12 prevê que, ao elaborar o edital, a administração pública federal deverá assegurar, sempre que possível, a participação social, fazendo com que os requisitos exigidos sejam mais aderentes à realidade.
Ainda no artigo 9º, foi prevista a possibilidade da utilização de critérios de julgamento qualitativos, como inovação, criatividade, territorialidade e sustentabilidade, que reforçam o disposto no art. 5º da Lei nº 13.019/2014. Ademais, com as alterações efetuadas no artigo 13, torna-se possível a participação de representantes da sociedade civil nas comissões de seleção de OSC, sendo recomendado que esse representante seja indicado pelo conselho gestor da política pública na qual o edital se insere. Essa alteração busca promover maior participação das entidades nos processos de contratualização do Estado com OSC, dando-lhe maior transparência e aumentando o controle social.
Para a etapa de celebração, foram realizados ajustes que impactam os instrumentos jurídicos que formalizam a parceria, visando, sobretudo, desburocratizar a sua execução. A reformulação desta etapa foi fruto de questionamentos amplamente apontados pelas OSCs aos gestores públicos. A titularidade de bens adquiridos pela OSC com recursos da parceria foi revista no artigo 23 do Decreto nº 8.726/2016, racionalizando procedimentos. A partir da nova regra, os bens remanescentes das parcerias passam a ser, usualmente, propriedade das OSCs, possibilitando que as entidades sigam realizando suas atividades de interesse público. As exceções a essa regra devem estar explicitadas no instrumento de celebração de parceria, tendo a administração pública prazo de sessenta dias para providenciar a retirada dos bens, garantindo a celeridade necessária para que não haja interrupção na prestação do serviço público, tampouco prejuízos às OSCs decorrentes da guarda desses bens.
Ainda na etapa de celebração, é importante mencionar a alteração do artigo 25, com inclusão do §1º que tornam mais claros os elementos que podem ser utilizados para a comprovação da compatibilidade dos custos apresentados na parceria com os preços praticados no mercado.
No artigo 33 foi incluída a possibilidade de rescisão motivada pelo inadimplemento da administração pública, promovendo mais equidade entre os parceiros por meio de regras que vinculam a administração e a entidade sem fins lucrativos em suas responsabilidades. O objetivo é promover maior segurança jurídica e impedir que as organizações sejam prejudicadas por atrasos na liberação de recursos.
No mesmo intuito de promover maior segurança jurídica, alterou-se o artigo 39 para detalhar com quais gastos a OSC pode utilizar o recurso recebido. Fica estabelecido que as OSCs poderão realizar quaisquer despesas previstas no plano de trabalho, desde que necessárias à execução do objeto. Também na etapa da execução da parceria, é prevista a possibilidade de pagamento de direitos trabalhistas, inclusive verbas rescisórias, com recursos da parceria.
Cabe também ressaltar duas alterações que visam dinamizar a aplicação dos recursos para atingir os objetivos da parceria e realizar políticas públicas. São mudanças promovidas nos artigos 42 e 43 que, respectivamente, autorizam alterações de até 10% do valor global no plano de trabalho sem necessidade de autorização prévia, e ampliação de até 50% do valor global da parceria por meio de termo aditivo.
No tema do monitoramento e avaliação, no artigo 14, foi retirada a hipótese de impedimento para servidor que tenha participado da comissão de seleção. A alteração foi justificada porque não se configura, em tese, conflito de interesse, uma vez que a participação na seleção deve seguir critérios objetivos, qualitativos e quantitativos, previstos em edital.
Também foi realizado ajuste no artigo 51 do decreto a fim de possibilitar que instâncias de controle social da política pública tenham papel mais relevante nas ações de monitoramento e avaliação dos termos de fomento ou colaboração, garantindo que o acompanhamento e verificação das ações da parceria seja feito não apenas sob o olhar da administração pública, mas também da sociedade civil.
Além disso, elencam-se outras alterações pertinentes do decreto:
> esclarecimento dos conceitos e objetivos do Termo de Colaboração e de Fomento, indicando que o primeiro é iniciativa da administração pública e o segundo das OSCs (art. 2º, §1º e 2º);
> obrigatoriedade de a administração estabelecer critérios para definir objetos, metas, custos e indicadores de resultados nas parcerias (art. 4º);
> aprimoramento das regras para parcerias por emendas parlamentares, exigindo propostas do parlamentar autor da emenda (art. 8º, §3º);
> ampliação dos pontos a serem especificados nos editais de chamamento público, incluindo acessibilidade, tipo de parceria e critérios qualitativos (art. 9º);
> possibilidade de serem privilegiados critérios de julgamentos qualitativos a serem inseridos no edital (inovação, criatividade, territorialidade e sustentabilidade) (art. 9º, §4º);
> a administração pública poderá orientar e esclarecer as OSCs sobre a inscrição e a elaboração de propostas (art. 9º, §13);
> novas regras sobre contrapartida não financeira obrigatória (art. 12) ou voluntária (art. 12-A);
> ampliação da possibilidade de vigência das parcerias para até dez anos (art. 21);
> necessidade de comprovantes de experiência prévia na realização do objeto da parceria (art. 26, III, e;
> possibilidade de OSCs oferecerem contrapartida voluntária, financeira ou não (art. 12-A).
Além de aprimorarem os instrumentos das parcerias, as novas regras ampliam a participação social no ciclo de políticas públicas, o que permite fortalecê-las a partir da experiência de diversos atores sociais, gerando maior aderência às diversas realidades das populações mais necessitadas. A sociedade civil poderá contribuir na construção de chamamentos públicos, e uma plataforma eletrônica será disponibilizada para receber Propostas de Manifestação de Interesse Social (“PMIS”). A participação social nas comissões de seleção também passa a ser possível.
Essas mudanças visam aprimorar as relações entre as organizações da sociedade civil e a administração pública federal, tornando o processo mais seguro, transparente e equitativo.
Bruno Fontenelle
Advogado da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Sobre a edição do MROSC e seus principais desafios, cf. DIAS, Maria Tereza Fonseca; BONIN, Stefânia de Matos. Parcerias da Administração Pública com as Organizações da Sociedade Civil: análise da lei nº 13.019/2014 como norma geral de contratação pública. In: DIAS, Maria Tereza Fonseca; MUZZI FILHO, Carlos Victor; PAES, José Eduardo Sabo (Orgs.). Relações administrativas bilaterais. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016. (Coleção Instituições Sociais, Direito e Democracia, v. 8) e DIAS, Maria Tereza Fonseca; BRAGA, Juliana de Souza Bechara. Parcerias da Administração Pública com as entidades privadas sem fins lucrativos na Lei nº 13.019/2014 e a questão da univocidade conceitual do “terceiro setor”. REPATS - Revista de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor. Brasília, v. 2, nº 2, p.70-85, Jul-Dez, 2015.