A mudança da jurisprudência da Terceira Turma do STJ acerca da necessidade de apresentação de CNDs para concessão da recuperação judicial
Rafael de Albuquerque R. Queiroz
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (1).
Durante muito tempo, em observância aos princípios inerentes ao direito concursal, o Poder Judiciário dispensou o devedor da apresentação de Certidões Negativas de Débitos Tributários (“CNDs”) para a concessão da recuperação judicial, como preveem os arts. 57 da Lei nº 11.101/2005 e 191-A do CTN:
Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.
Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei.
Em setembro de 2020, o Informativo VLF – 72/2020 divulgou artigo com a notícia de que o Ministro do Supremo Tribunal Federal (“STF”) Luiz Fux havia proferido decisão exigindo a apresentação das CNDs para homologação do plano de recuperação judicial, nos autos da Reclamação nº 43.169 (2).
Naquele caso, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) havia dispensado a recuperanda de apresentar CNDs – ou certidão positiva com efeitos de negativa – para a homologação do plano de recuperação judicial, justamente em observância ao princípio da preservação da empresa, consubstanciado no art. 47 da Lei nº 11.101/2005. Irresignada, a União pleiteou medida liminar para o STF suspender o acórdão, o que foi deferido pelo Ministro Luiz Fux.
Posteriormente, o Ministro Dias Toffoli derrubou a medida liminar concedida, prevalecendo o entendimento pela desnecessidade da apresentação de CNDs, o que também foi objeto de análise da equipe do VLF Advogados, dessa vez no Informativo VLF – 75/2020, divulgado em 29 de dezembro de 2020 (3).
Como visto anteriormente, durante muito tempo prevaleceu no STJ jurisprudência no sentido de ser desnecessária a comprovação de regularidade tributária para homologação do plano de recuperação judicial, porque não havia lei específica disciplinando o parcelamento da dívida fiscal e previdenciária de empresas em recuperação judicial. Mesmo com o advento da legislação federal que possibilitou o parcelamento de dívidas tributárias de empresas em recuperação judicial, prevaleceu a competência do juízo universal, em homenagem ao princípio da preservação da empresa (4).
Contudo, recentemente, a Terceira Turma do STJ alterou seu entendimento, afirmando que há a necessidade de apresentação das CNDs pela recuperanda para a concessão da recuperação judicial, como ocorreu no julgamento do REsp nº 2.053.240/SP e REsp nº 2.082.781/SP, sob pena da suspensão do procedimento recuperacional (5).
O Ministro Relator fez breve resgate histórico acerca da jurisprudência do STJ até o momento, explanando as questões suscitadas acima, inclusive o deferimento da medida liminar pelo Ministro Luix Fux e a reforma pelo Ministro Dias Toffoli.
De acordo com a Terceira Turma, a partir da vigência da Lei nº 14.112/2020, tornou-se necessário dirimir a controvérsia acerca da necessidade do cumprimento da exigência legal estabelecida no art. 57 da Lei nº 11.101/2005 para concessão da recuperação judicial.
O Ministro Marco Aurélio Belizze, relator do REsp nº 2.053.240/SP, afirmou que a nova lei que alterou a Lei de Recuperação Judicial e Falências “buscou suprir as inadequações apontadas e destacadas pela doutrina e pela jurisprudência entre as disposições legais originárias e a prática, a fim de atingir, efetivamente, as finalidades precípuas dos institutos estabelecidos na lei”.
Nesse sentido, acrescentou que a nova lei estabeleceu estrutura mais adequada para o parcelamento dos débitos tributários das empresas em recuperação judicial, o que revela a intenção do legislador de conferir concretude à exigência de regularidade fiscal à empresa em crise, conciliando os fins do procedimento recuperacional de um lado e o interesse da Fazenda Pública de outro, com a consequente necessidade da apresentação das CNDs para concessão da recuperação judicial:
4. A partir da exposição de motivos e, principalmente, das disposições implementadas pela Lei 14.112/2020 - que se destinaram a melhor estruturar o parcelamento especial do débito fiscal (no âmbito federal) para as empresas em recuperação judicial (art. 10-A e 10-B da Lei n. 10.522/2022), bem como a estabelecer a possibilidade de a empresa em recuperação judicial realizar, com a União, suas autarquias e fundações, transação resolutiva de litígio relativa a créditos inscritos em dívida ativa, nos moldes da Lei 13.988/2020, a chamada Lei do Contribuinte Legal (10-C da Lei n. 10.522/2022), com o estabelecimento de grave consequência para o caso de descumprimento - pode-se afirmar, com segurança, o inequívoco propósito do legislador de conferir concretude à exigência de regularidade fiscal a empresa em recuperação judicial (cuja previsão, nos arts. 57 e 58 da LRF, remanesceu incólume, a despeito da abrangente alteração promovida na Lei n. 11.101/2005). (...)
5.4 A exigência da regularidade fiscal, como condição à concessão da recuperação judicial, longe de encerrar um método coercitivo espúrio de cumprimento das obrigações, constituiu a forma encontrada pela lei para, em atenção aos parâmetros de razoabilidade, equilibrar os relevantes fins do processo recuperacional, em toda a sua dimensão econômica e social, de um lado, e o interesse público titularizado pela Fazenda Pública, de outro. Justamente porque a concessão da recuperação judicial sinaliza o almejado saneamento, como um todo, de seus débitos, a exigência de regularidade fiscal da empresa constitui pressuposto da decisão judicial que assim a declare. 5.5 Sem prejuízo de possíveis críticas pontuais, absolutamente salutares ao aprimoramento do ordenamento jurídico posto e das decisões judiciais que se destinam a interpretá-lo, a equalização do débito fiscal de empresa em recuperação judicial, por meio dos instrumentos de negociação de débitos inscritos em dívida ativa da União estabelecidos em lei, cujo cumprimento deve se dar no prazo de 10 (dez) anos (se não ideal, não destoa dos parâmetros da razoabilidade), apresenta-se – além de necessária – passível de ser implementada.
Para o Ministro, com a redação da Lei nº 14.112/2020, não é mais possível utilizar como fundamento o princípio da preservação da empresa e da função social (art. 47 da LRF) para a dispensa da apresentação das CNDs, “sobretudo após a implementação, por lei especial, de um programa legal de parcelamento factível, que se mostrou indispensável a sua efetividade e ao atendimento a tais princípios”.
Destaca-se, ainda, que os mencionados acórdãos fizeram ressalva pontuando que o parcelamento foi implementado pelo legislador apenas no âmbito federal, de modo que a exigência de regularidade fiscal com os demais entes federados só pode ser exigida, para a concessão da recuperação judicial, a partir da edição de lei específica dos referidos entes.
Por fim, nos casos analisados, o STJ mencionou que o não cumprimento da apresentação das CNDs não pode acarretar a convolação em falência do devedor, haja vista que não há previsão legal para tanto, mas sim a suspensão da recuperação judicial.
Conclui-se, portanto, que apesar de não serem precedentes vinculantes, os julgados podem representar delicada mudança no âmbito das recuperações judiciais, notadamente acerca da regularidade do devedor com o Fisco, seja por meio do parcelamento ou do pagamento, para que o procedimento recuperacional seja devidamente concluído.
Registre-se, por fim, que as condições próprias de parcelamento e transação para as empresas em recuperação judicial previstas nos arts. 10-A, 10-B e 10-C da Lei nº 10.522/2002 podem ser benéficas para o devedor, na medida em que permitem o cumprimento do plano de recuperação judicial em conjunto com as obrigações tributárias, sem o curso de execuções fiscais que muitas vezes sobrecarregam a recuperanda.
A previsão do Informativo VLF – 72/2020 de que a existência de parcelamentos próprios poderia alterar o rumo da jurisprudência se confirmou, pouco mais de três anos depois.
Se quiser entender melhor o tema, consulte a equipe de Recuperação Judicial e Falências do VLF Advogados.
Rafael de Albuquerque R. Queiroz
Advogado da Equipe de Recuperação Judicial e Falências do VLF Advogados
(1) Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
(2) Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=830. Acesso em: 19 mar. 2024.
(3) Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=852. Acesso em: 19 mar. 2024.
(4) REsp 1.187.404/MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Corte Especial, DJe de 21/8/2013; REsp n. 1.864.625/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/6/2020, DJe de 26/6/2020 AgInt no REsp n. 1.726.128/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 27/3/2023.
(5) REsp n. 2.053.240/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 19/10/2023; REsp n. 2.082.781/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 28/11/2023, DJe de 6/12/2023.