Unidade de Conservação e os empreendimentos de infraestrutura de utilidade pública preexistentes: em busca da previsibilidade perdida
Leonardo Corrêa
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (“ICMBio”) aprovou recentemente a Portaria ICMBIO nº 1.002, de 5 de abril de 2024, que dispõe sobre empreendimentos de infraestrutura de utilidade pública e/ou interesse social preexistentes à criação das Unidades de Conservação federais.
A norma tem como objetivo estabelecer critérios claros para as decisões administrativas ambientais, buscando aumentar a segurança jurídica e a previsibilidade em situações de conflito territorial entre empreendimentos de infraestrutura de utilidade pública e/ou interesse social que já existiam antes da criação das unidades de conservação federais.
Vale ressaltar, preliminarmente, que o tema já foi regulado pelo Capítulo IV da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, norma que estabelece o regime jurídico das Unidades de Conservação no Brasil. O artigo 22, § 2º define que a criação de Unidades de Conversação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade. Uma vez que a criação de uma Unidade de Conservação impõe limites ao uso da propriedade e desenvolvimento das atividades econômicas de terceiros, o objetivo da regra do artigo 22 § 2º é estabelecer uma racionalidade apta a avaliar a viabilidade e eventuais conflitos territoriais da nova Unidade de Conservação.
A realidade, entretanto, é outra. Ao longo dos últimos 20 (vinte) anos, União, Estados e Municípios criaram inúmeras Unidades de Conservação com estudos de viabilidade desprovidos do rigor necessário do ponto de vista fundiário e da dinâmica econômica preexistente na região. O resultado é a reprodução de uma lógica irracional de acumulação de sobreposições entre Unidades de Conservação e atividades econômicas, tais como, linhas de transmissão, oleodutos, ferrovias, rodovias e atividades minerárias.
Nesse contexto de insegurança jurídica e institucional, a Portaria ICMBIO nº 1.002/2024 tem o mérito de, ao menos, reconhecer expressamente a necessidade de um juízo de ponderação antes da criação de Unidades de Conservação no caso de empreendimentos de infraestrutura de utilidade pública e/ou interesse social preexistentes ao ato de criação destes espaços protegidos.
A norma define como o âmbito de abrangência, os empreendimentos de infraestrutura de utilidade pública e/ou interesse social, tais como, rodovias, estradas, ferrovias, hidrovias, sistemas de abastecimento de água, linhas de distribuição e transmissão de energia, estação transmissora de radiocomunicação, rede de telecomunicações, gasodutos e oleodutos.
A mineração não é citada expressamente como uma das tipologias da portaria, mas parece-nos que, evidentemente, a norma se aplica aos conflitos entre os empreendimentos minerários preexistentes à criação de Unidades de Conservação. Em primeiro lugar, pelo próprio reconhecimento do “interesse nacional” do artigo 176 da Constituição. Ademais, outros dispositivos infraconstitucionais reconhecem a mineração como atividade de utilidade pública, como o artigo 3º, VIII, b do Código Florestal.
A portaria estabelece que, ao identificar um conflito territorial, o ICMBio deverá levar em consideração alguns critérios objetivos na avaliação da viabilidade da Unidade de Conservação: impacto ambiental, existência de alternativa técnica e locacional, valor de eventual indenização devida na hipótese de descomissionamento, bem como relevância social e econômica do serviço/produto. Trata-se de reconhecer, portanto, que a criação de uma Unidade de Conservação é uma decisão importante para a manutenção e proteção da biodiversidade, mas não é um valor absoluto e hierarquicamente superior em face da geração de empregos, renda e inovação tecnológica.
Aspecto importante da portaria é reconhecer a necessidade de um diálogo institucional entre outros órgãos públicos como condição para a construção de uma ponderação adequada sobre o caso. De fato, em muitos casos, o conflito territorial evidencia outros casos de sobreposição de áreas, tais como territórios indígenas, quilombolas, assentamentos, e, consequentemente, a interlocução de órgãos como a FUNAI, Fundação Palmares, INCRA etc.
De acordo com a portaria, o ICMBIO poderá seguir uma das alternativas: a) admissão provisória da continuidade da atividade e encaminhamento ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (“MMA”) de proposta de lei visando à desafetação da área ou à recategorização da unidade de conservação; b) admissão provisória da continuidade da atividade com prazo e condições definidas para futuro descomissionamento; ou c) admissão da continuidade da atividade mediante assentimento expresso do ICMBio.
Evidentemente, a possibilidade de admissão provisória da continuidade da atividade (item b) deve ser adotada com reservas pelo Poder Público, pois é uma opção que depende de prévia indenização em razão da impossibilidade de continuidade de atividade econômica juridicamente regular.
O item 7 da portaria, entretanto, é merecedor de críticas, pois estabelece que o ICMBio poderá fixar, em comum acordo com o empreendedor, formas de compensação ambiental específicas em favor da Unidade de Conservação afetada. Ora, a compensação, neste caso, é juridicamente questionável, pois (i) o empreendimento em operação já alocou recursos para a compensação quando de sua instalação no âmbito do processo de licenciamento ambiental; (ii) não parece adequando falar em compensação em uma situação na qual o empreendimento é preexistente à criação da Unidade de Conservação.
De qualquer forma, em contexto de insegurança jurídica, a Portaria ICMBIO nº 1.002/2024 é importante avanço na busca por maior grau de racionalidade e previsibilidade no Direito Ambiental.
Para saber mais sobre o tema, consulte a equipe de Direito Ambiental e Negócios Sustentáveis do VLF Advogados.
Leonardo Corrêa
Sócio-executivo da Equipe de Direito Ambiental e Negócios Sustentáveis do VLF Advogados