Teoria e Prática: a Lei nº 14.454/2022 e os Planos de Saúde de Autogestão, o que mudou?
Anna Julia Costa
A Lei nº 14.454, foi publicada em setembro de 2022, com o objetivo de estabelecer os critérios para cobertura de exames e tratamentos que não são parte do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (“ANS”). Entre as mudanças trazidas pela Lei, destaca-se a implementação do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) como uma das normas regentes das relações entre operadoras de planos de saúde e seus beneficiários.
Entretanto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) materializado na Súmula 608 é de que os planos de saúde de autogestão não são submetidos às previsões do código consumerista. Em razão disso, desde a promulgação da Lei, especulou-se sobre o seu impacto nesse modelo de operação. Agora, mais de um ano após o início de sua vigência, já é possível vislumbrar as tendências de interpretação adotadas pelos tribunais e seus reflexos na prática.
As mudanças normativas e jurisprudenciais trazidas pela Lei nº 14.454/2022 aos Planos de Saúde de Autogestão
A movimentação legislativa que dá origem à edição da Lei nº 14.454/2022 surge da discussão sobre o caráter taxativo ou exemplificativo do rol da ANS. Consequentemente, a lei foi responsável por fixar o entendimento de que esse rol é exemplificativo, além de definir os critérios para que um procedimento que não tenha sido listado, seja coberto pelo plano de saúde.
Assim, de início, notamos que o art. 1º da Lei define que o CDC será utilizado como norma subsidiária para reger as “pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde”. Ocorre que, a Súmula 608 do STJ, anterior à nova lei, trazia uma exceção à jurisprudência da época: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.
Dessa forma, surge o questionamento: a Lei nº 14.454/2022 alterou o entendimento acerca das normas aplicáveis às operadoras de saúde a ponto de atingir a Súmula do STJ? E mais, há contradição entre a determinação da lei e a da Súmula 608?
Para o Senador Romário Faria (1), a redação da lei implicaria, necessariamente, na extensão da “proteção” do CDC aos planos de saúde de autogestão. Porém, em análise jurídica, não há, necessariamente, uma contraposição entre as disposições.
Isso, porque, à época da edição da súmula, a Lei nº 9.656/1998 (alterada pela Lei nº 14.454/2022) já previa que “submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde”. Foi sobre essa norma que o STJ determinou que (i) em geral, seria aplicado o CDC de forma subsidiária à relação entre a operadora de plano de saúde e beneficiário e que (ii) haveria uma exceção para os planos que funcionam em regime de autogestão.
De maneira mais específica, o regime de exceção conferido aos planos de saúde de autogestão se deu porque essas pessoas jurídicas, por seus aspectos constitutivos, caracterizam relação jurídica muito diversa dos contratos firmados com empresas que exploram essa atividade no mercado.
Por exemplo, no caso dos planos de saúde empresariais, a contratação coletiva é feita entre a operadora e as empresas empregadoras e, não, diretamente com o participante, não havendo possibilidade de constituição de relação de consumo. Sendo esse o fundamento da Súmula 608, fica claro que a nova redação da Lei nº 14.454/2022 não altera o caráter de exceção aplicado aos planos de autogestão.
Exatamente por isso é que, desde a publicação da nova lei, o STJ não mudou seu entendimento em relação à exceção de regime dada pela Súmula 608. Nos Tribunais estaduais, o entendimento também segue sendo aplicado, inclusive com a expressa ciência e citação da nova lei.
Dessa forma, na prática, os termos da Lei nº 14.454/2022 não alteram os fundamentos do posicionamento do STJ sobre a aplicação do CDC às relações com planos de saúde. Por isso, a especificação do Tribunal continua válida e as operadoras de planos de saúde em regime de autogestão seguem sendo exceção à relação consumerista.
Anna Julia Costa
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9195382&ts=1664997122023&disposition=inline. Acesso em: 26 abr. 2024.
(2) AgInt no REsp n. 1.997.175/MG, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 12/12/2022, DJe de 15/12/2022; AgInt no REsp n. 1.986.758/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 12/12/2022, DJe de 15/12/2022.
(3) TJMG - Apelação Cível 1.0000.21.270075-1/001, Des. José Américo Martins da Costa, 15ª Câmara Cível, DJe em 18/05/2022; TJSP - Apelação Cível 1006845-53.2022.8.26.0004, Des. Moreira Viegas, 5ª Câmara de Direito Privado; DJe em 09/04/2024); TJRJ – Apelação Cível 0019440-52.2011.8.19.0208, Des. Renato Lima Charnaux Serta, 19ª Câmara de Direito Privado, DJe em 04/04/2024.