A morte do cachorro Joca e a proposta de alterações das normas aplicáveis aos animais na reforma do Código Civil
Leila Bitencourt e Fernanda Galvão
1) O caso Joca
Em 22 de abril de 2024, o cachorro Joca deveria ter sido transportado em avião comercial da cidade de Guarulhos, SP, para Sinop, MT, trajeto que seu tutor também faria de forma separada. Os animais são transportados como carga e devem estar em compartimento próprio, algo como o porão da aeronave destinado para mercadorias (1).
Ao chegar em Sinop, o tutor de Joca foi informado de que o cão havia sido enviado por engano para a cidade de Fortaleza, CE (1). Câmeras mostram que Joca estava vivo ao desembarcar em Fortaleza, onde ficou cerca de 40 minutos e foi colocado em outro avião com destino a Guarulhos, local em que foi encontrado sem vida. O laudo existente até o momento levanta a suspeita de que Joca tenha tido parada cardiorrespiratória por causa do calor. Porém, é preciso aguardar a necrópsia para confirmar a informação (2).
Esse caso impulsionou vários debates na sociedade civil e em setores de empresas aéreas sobre o fato de animais não poderem ser tratados como mercadoria, pois, muito provavelmente, a morte de Joca decorreu de sua exposição ao calor excessivo, dentro de uma caixa sem circulação de ar, colocado num pátio de aeroporto como mala (3). Essa polêmica se relaciona às normas do Direito Civil aplicáveis aos animais, conforme será abordado no próximo tópico.
2) Normas do Código Civil aplicáveis aos animais: as regras de bens móveis e o contrato de transporte
Os artigos 79 e 82 do Código Civil (4) classificam os bens entre imóveis e móveis, respectivamente, em que os primeiros são conceituados como o solo e tudo o que lhe incorporar, seja de forma natural ou artificial. Os bens móveis, por sua vez, estão definidos como aqueles que têm movimento próprio ou que podem ser removidos por força alheia, sem que sua substância e suas funções econômico-sociais sejam alteradas. São bens móveis, ainda, o que a lei assim considerar, como é o caso da energia elétrica, dos direitos de crédito e dos direitos intelectuais, por exemplo (5).
É dentro da classificação de bens móveis, mais especificamente na categoria daqueles que se movem por força própria, que estão os animais – também chamados de semoventes. Eles se diferenciam das coisas inanimadas, que só se movem por força alheia (mercadorias, por exemplo) (6).
Ainda assim, existem normas para proteger os animais. Uma das possíveis explicações para a tutela jurídica aos animais é que ela decorre de direito da própria humanidade, pois o ser humano reconhece ser parte de grupo mais amplo de vida sensível no universo, razão pela qual mesmo a agressão a vidas que não humanas alcançam o sentimento de piedade da sociedade (7).
A título de reflexão no atual contexto de possível reforma do Código Civil brasileiro, destacam-se as discussões que vêm crescendo, nos últimos anos, em outros países, sobre a inclusão de animais numa categoria diferente de bem. Exemplo disso é o art. 201-B do Código Civil português que passou a considerar os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza” após 2017. Idêntica designação passou a adotar o Código Civil francês em 2015 (art. 515-14), embora ainda mantenha os animais submetidos ao regime dos bens (8) (9).
No contexto do Código Civil, o contrato de transporte é disciplinado por normas gerais e por artigos específicos aplicáveis ao transporte de pessoas e, ainda, outras previsões que regulam o transporte de coisas. A classificação de animal como bem móvel semovente faz com que sejam aplicáveis as normas relativas ao contrato de transporte de coisas. Tais previsões legais coexistem, ainda, com normas específicas de transporte – como o caso da aviação, por exemplo – especificidade que não é objeto deste texto, que foca no contrato de transporte disciplinado pelo Código Civil.
O contrato de transporte de coisas é regido pelos artigos 743 e 756 do Código Civil e se caracteriza, em linhas gerais, pela obrigação de o transportador entregar, em certo lugar, uma coisa que lhe foi confiada em troca de remuneração (10).
As coisas objetos do transporte podem ser classificadas em diferentes tipos, de acordo com a espécie de bens transportados. Os animais estão incluídos nesse rol. Tem-se, assim, a bagagem (objetos de uso pessoal que acompanham o passageiro); a encomenda (coisas remetidas sob tarifa especial, para tornar mais rápido o transporte); os valores (joias, dinheiro, títulos públicos ou particulares, como ações, debêntures, cheques, obrigações do tesouro nacional etc.); as mercadorias (bens em geral que não se enquadram com os demais tipos acima); e, finalmente, os animais, os quais devem ser transportados em condições adequadas de higiene e segurança (10).
Compreendidos os pontos centrais do tratamento jurídico dado aos animais conforme o Código Civil em vigor, que o considera como bem móvel e que isso, consequentemente, classifica o contrato de seu transporte como espécie de transporte de coisas, o tópico a seguir dedica-se a analisar as principais propostas de reforma do Código Civil sobre o tema.
3) Proposta de normas aplicáveis aos animais no anteprojeto de reforma do Código Civil
Antes de tratar sobre possíveis alterações do Código Civil, é importante contextualizar o movimento de reforma que está em curso no Brasil. Em 24 de agosto de 2023, a Presidência do Senado Federal nomeou 34 membros para a elaboração de proposta para reforma da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022 – Código Civil. Com isso, formou-se a chamada “Comissão de Juristas”, a qual foi concedido o prazo de 180 dias para apresentação de anteprojeto de lei com as sugestões de alteração. A referida comissão teve até o dia 12 de abril de 2024 para concluir os trabalhos que podem resultar em alterações do Código Civil se passar pela tramitação legislativa (11).
Desde então, todos os livros do Código Civil passaram por debates pela Comissão de Juristas, que se dividiu em subcomissões organizadas conforme os seguintes temas: Parte Geral; Obrigações; Responsabilidade Civil; Contratos; Direito da Empresa; Direito das Coisas; Direito de Família; Direito das Sucessões; e Direito Digital (12).
O anteprojeto foi entregue em 17 de abril de 2024 (13) e, em relação às normas aplicadas aos animais, destacam-se os trabalhos realizados pela subcomissão de Parte Geral. Após vários debates, foram propostas diversas alterações no Código Civil, dentre as quais serão evidenciadas, a seguir, aquelas que podem gerar impactos no contrato de transporte de animais.
Primeiramente, ressalta-se a seguinte proposta de nova redação ao artigo 19 do atual Código Civil: “A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa” (14). Nesse ponto, é possível perceber a ênfase que a Comissão de Juristas pretendeu dar ao aspecto sensível ao animal, para além de ser considerado bem móvel, sinalizando aprofundamento de tal perspectiva.
Em segundo lugar, salienta-se que o anteprojeto sugere, ainda, a inclusão do artigo 91-A do Código Civil, que estabelece a necessidade de proteção especial dedicada aos animais. Apesar de manter a aplicação das normas relativas a bens aos animais no que couber, estabelece, ao mesmo tempo, a necessidade de tratamento diferenciado em razão da existência de vida sensível:
Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes (15) e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade (14).
A manutenção da aplicação do regime de bens aos animais tem consequências práticas, como, por exemplo, a possibilidade de animais serem objeto de penhor, algo atualmente previsto no artigo 1.447 do Código Civil e mantido no anteprojeto (16).
A subcomissão de Parte Geral apresentou como justificativa de tal alteração, julgado do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) de caso envolvendo animal de companhia, que, segundo a decisão, “possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade” (17).
Ademais, a subcomissão argumentou que a atual classificação de animais como bem móvel semovente não é adequada, pois eles são seres vivos e não somente um bem que consegue se mover, razão pela qual devem contar com proteção jurídica específica (17).
A subcomissão alerta, ainda, que as alterações propostas não têm o objetivo de estabelecer todos os detalhes dessa proteção dos animais. Tal entendimento pode ser sinalização de que outras normas podem surgir e que essa possível alteração no Código Civil será importante marco para tais iniciativas. Por fim, em seu relatório, a subcomissão menciona que as mudanças propostas são inspiradas no Código Civil português (17).
4) Possíveis impactos das alterações do Código Civil no contrato de transporte
Ainda que se mantenham os animais na categoria de bem e que, assim, permaneçam sendo transportados conforme cláusulas do contrato de transporte de coisas, se as alterações propostas no anteprojeto forem aprovadas pelo Congresso Nacional e incorporadas no Código Civil, provavelmente os transportadores que lidam com carga viva passarão a ser obrigados a adotar medidas para resguardar a integridade dos animais transportados, o que não ocorre a rigor atualmente.
Aliás, como resposta aos diversos apelos da sociedade decorrentes do caso Joca, a Câmara dos Deputados aprovou, em 8 de maio, o projeto de lei que determina que as companhias aéreas deverão ofertar o transporte de cães e gatos na cabine do avião, para que esses animais de estimação possam viajar com os seus tutores em voos domésticos. Esse projeto estabelece, ainda, que deverá haver rastreamento dos animais transportados e que aeroportos com circulação superior a 600 mil passageiros por ano deverão contar com veterinários para acompanhar todas as fases de transporte do animal transportado (18).
Apesar de aprovado pela Câmara, para que se transforme em lei e passe a ser obrigatório, o anteprojeto ainda precisa ser aprovado também pelo Senado e só então ser submetido à sanção pela Presidência da República (18), ou seja, o trâmite legislativo costuma ser demorado.
Ademais, há muito o que discutir na implementação prática desse tipo de legislação, pois a permissão de animais nas cabines de aeronaves, ônibus e navios junto a seus tutores perpassa por diversas questões polêmicas, como animais de grande porte considerados de estimação, condições de saúde, inclusive psíquicas de outros passageiros com fobia a animais, apenas para citar alguns. Essas polêmicas estão longe de ser apaziguadas apenas com a aprovação do anteprojeto. Vários casos marcantes que ocorreram nos Estados Unidos ilustram esse cenário complexo. Basta ver os debates gerados após ocorrer o embarque de um pavão como animal de apoio emocional de passageiro (19).
Portanto, ainda que no Brasil a continuidade da aplicação aos animais das normas jurídicas relativas a bens e que a proposta no anteprojeto não alterará o enquadramento desse transporte na categoria de coisas, possivelmente uma série de novas exigências regulatórias para esse tipo de contrato – seja terrestre, aéreo ou marinho – estão por vir. Isso porque o Código Civil continuará sendo a linha mestre das normas de Direito Civil complementada por regras específicas. Aliás, é possível notar que algumas tentativas mais imediatas aconteceram nas últimas semanas justamente em virtude do caso Joca.
A exemplo disso, em 24 de abril de 2024, o Ministério de Portos e Aeroportos e a Agência Nacional de Aviação Civil (“ANAC”) se reuniram com representantes da GOL, Latam, Azul Linhas Aéreas e Associação Brasileira das Empresas Aéreas para definir ações para aperfeiçoar os procedimentos relacionados ao transporte aéreo de animais. No entanto, tratou-se de conversa inicial, sem alteração concreta em normas que tornem qualquer medida obrigatória pelas companhias aéreas, que têm, por enquanto, a faculdade de providenciar mudanças para melhorar o transporte de animais (20).
Além disso, a ANAC abriu uma consulta pública em 29 de abril de 2024 para colher sugestões dos integrantes do setor aéreo e sociedade em geral sobre a atualização e modificação da Portaria nº 12.307, de 25 de agosto de 2023, que trata das regras de transporte aéreo de animais, que foi prorrogada até o próximo dia 3 de junho (21).
Compreender os principais impactos da possível reforma do Código Civil nos contratos em geral é crucial para estabelecer a melhor abordagem para regular a divisão de responsabilidades e alocação de riscos entre as partes contratantes. O VLF Advogados conta com equipe especializada em consultoria contratual com vasta experiência na elaboração e negociação de contratos de diversos tipos. Para mais informações, não hesite em nos contatar.
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) POLÍCIA investiga morte de cachorro após erro em transporte aéreo e aguarda laudos da necropsia. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/04/23/policia-investiga-morte-de-cachorro-apos-erro-em-transporte-aereo-e-aguarda-laudos-da-necropsia.ghtml. Acesso em: 15 mai. 2024.
(2) EXCLUSIVO: imagens mostram último registro de cão Joca com vida ao desembarcar em Fortaleza. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/04/28/exclusivo-imagens-mostram-ultimo-registro-de-cao-joca-com-vida-ao-desembarcar-em-fortaleza.ghtml. Acesso em: 23 mai. 2024.
(3) TRAGÉDIA do cão Joca reacende debate sobre transporte de pets no Brasil. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/tragedia-do-cao-joca-reacende-debate-sobre-transporte-de-pets-no-brasil. Acesso em: 15 mai. 2024.
(4) Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
(5) GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. São Paulo: Grupo GEN, 2019, p. 162.
(6) PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil – Teoria Geral de Direito Civil. v. I. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 359.
(7) BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1908, p. 221 apud RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. São Paulo: Grupo GEN, 2023, p. 741.
(8) PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil – Teoria Geral de Direito Civil. v. I. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 359.
(9) O Código Civil francês prevê no artigo 515.14 o seguinte: Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sujeitos às leis que os protegem, os animais estão sujeitos ao regime de bens (tradução livre).
(10) RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. São Paulo: Grupo GEN, 2023, p. 741.
(11) SENADO FEDERAL. Ato do Presidente do Senado Federal n. 11, de 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/159721. Acesso em: 12 mai. 2024.
(12) SENADO FEDERAL. Composição Final da Comissão e Subcomissões. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7964&codcol=2630. Acesso em: 12 mai. 2024.
(13) SENADO FEDERAL. Novo Código Civil: Senado recebe anteprojeto de juristas e analisará o texto. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/17/novo-codigo-civil-senado-recebe-anteprojeto-de-juristas-e-analisara-o-texto. Acesso em: 12 mai. 2024.
(14) SENADO FEDERAL. CJCODCIVIL. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. Acesso em: 12 mai. 2024. O Anteprojeto está disponível no arquivo “QUADRO COMPARATIVO ENTRE O CÓDIGO VIGENTE E ANTEPROJETO” contido na página acessível no link.
(15) Seres sencientes são aqueles com capacidade de sentir sensações e sentimentos de forma consciente.
(16) Art. 1.447. Podem ser objeto de penhor máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados.
Parágrafo único. Regula-se pelas disposições relativas aos armazéns gerais o penhor das mercadorias neles depositadas.
(17) SENADO FEDERAL. Relatório Parcial Parte Geral. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7935&codcol=2630. Acesso em: 10 mai. 2024.
(18) AGÊNCIA BRASIL. Câmara aprova projeto que obriga aéreas a rastrear transporte de pets. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-05/camara-aprova-projeto-que-obriga-aereas-rastrear-transporte-de-pets. Acesso em: 9 mai. 2024.
(19) POR QUE perus, cangurus e até cavalos acompanham passageiros como animais de apoio em voos nos EUA. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49574690. Acesso em: 23 mai. 2024.
(20) MPor e Anac definem com aéreas regras mais rigorosas para transporte de animais. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202404/mpor-e-anac-definem-com-aereas-regras-mais-rigorosas-para-transporte-de-animais. Acesso em: 23 mai. 2024.
(21) PRORROGADA consulta pública sobre transporte de animais até 3 de junho de 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/noticias/2024/prorrogada-consulta-publica-sobre-transporte-de-animais-ate-3-de-junho-2. Acesso em: 23 mai. 2024.