Limitações da cláusula de eleição de foro: reflexões e pontos de atenção
Artur Cronemberger
A Lei nº 14.879/2024, publicada no Diário Oficial da União (“DOU”) de 5 de junho de 2024, trouxe importantes alterações no art. 63 do Código de Processo Civil (“CPC”), que disciplina o direito das partes à eleição de foro.
A cláusula de eleição de foro é uma das mais celebradas práticas contratuais em todo o mundo e está presente em quase todos os sistemas jurídicos ocidentais (1). No Direito brasileiro vigora ao menos desde 1850 (2), quando esteve prevista no regulamento do processo civil imperial.
Por meio dela as partes podem, em comum acordo, eleger foro competente para a solução de sua controvérsia, sendo que tal negócio jurídico se impõe ao poder judiciário e não pode ser desconsiderado pelo juiz da causa. Ou seja, as partes, consensualmente, podem derrogar as regras de competência territorial ou fixadas em razão do valor de acordo com a sua conveniência. Assim, tradicionalmente, a cláusula de eleição de foro é considerada norma processual que subordina o desenvolvimento do processo à vontade das partes (3).
Com o intuito de privilegiar a autonomia das partes, os requisitos da cláusula de eleição de foro sempre foram brandos. Bastava que a cláusula não fosse abusiva e que constasse em instrumento escrito aludindo especificamente a determinado negócio jurídico.
A eleição de foro já comportava restrição na sua concepção vigente até então. Na realidade, a cláusula de eleição de foro sempre esteve limitada às ações oriundas de direitos e obrigações (contratos em geral e estipulações em favor de terceiro) que versassem sobre direitos disponíveis (4).
Nesse ponto, registre-se que o entendimento jurisprudencial consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) (5) era no sentido de que a cláusula de eleição de foro não deveria prevalecer nos casos em que se discutisse a validade do próprio contrato. Além disso, a cláusula também era considerada inválida pelo STJ nos casos que tratassem de contratos de consumo e de contratos de adesão em que uma das partes era vulnerável e a disposição dificultasse o seu acesso à justiça (6).
A nova Lei nº 14.879/2024 incluiu novos requisitos de validade e, ainda, estabeleceu critérios e hipóteses nas quais ela seria considerada abusiva. Veja que a nova lei alterou o parágrafo 1º e acresceu o parágrafo 5º ao art. 63 do CPC, nos seguintes termos:
Art. 63. As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.
§ 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor. (Redação dada pela Lei nº 14.879, de 4 de junho de 2024)
§ 5º O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício. (Incluído pela Lei nº 14.879, de 4 de junho de 2024)
Note-se que com a nova redação do parágrafo 1º do art. 63 passa a ser necessário que as partes, ao elegerem a cláusula de eleição de foro, restrinjam suas escolhas aos foros que guardem pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.
Além disso, no parágrafo 5º o legislador decidiu por conceituar o termo “juízo aleatório” – incomum na prática jurídica (7) – que passou a significar aquele foro que não guarda elemento de conexão com a demanda. Nesse caso, o ajuizamento de demanda em juízo aleatório seria considerado abusivo e o juiz poderia declinar de ofício a competência. A norma não especifica, contudo, qual seria a consequência do ato abusivo.
Em síntese, foram duas as justificativas do projeto de lei que originou tais mudanças no art. 63 do CPC: (i) a eleição de foro pelas partes geralmente recairia naqueles Tribunais com “melhor desempenho”, fato que geraria uma “enxurrada de ações”; e (ii) a escolha do foro pelas partes significaria ofensa ao princípio constitucional do juiz natural.
Em primeiro lugar, como bem pontuado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual na Nota Técnica ao Projeto de Lei nº 1.803/2023 da Câmara dos Deputados, não se há notícia de rota migratória única ou de oásis jurisdicional que atraísse significativo número de jurisdicionados. Além disso, caso houvesse de fato congestionamento em determinados foros, esse seria um problema que viria a ser corrigido pelos próprios jurisdicionados, que deixariam de indicar aqueles foros nas cláusulas de eleição.
O argumento de suposta violação ao princípio do juiz natural também merece críticas. Como já exposto, a cláusula de eleição de foro é uma das convenções processuais mais antigas e consolidadas, que privilegia a autonomia das partes na medida em que elas, consensualmente, escolhem o foro que entendem como mais adequado. Nesse ponto, sabe-se que a flexibilização das regras de competência para foros mais adequados já é realidade recorrente no sistema processual moderno, como se vê nos Núcleos de Justiça 4.0 (8) e inúmeros acordos de cooperação vigentes no país baseados em atos concertados (9).
Na esteira do que defende o professor Antônio do Passo Cabral, em pleno século 21 não se pode mais admitir alocação errônea ou ineficiente da competência em razão de suposta segurança ou estabilidade, justificada pela inflexibilidade da regra legal da competência (10). Não há dúvidas de que a cláusula de eleição de foro confere ao poder judiciário maior eficiência, bem como prestigia às partes o direito fundamental de liberdade e confere segurança jurídica aos jurisdicionados.
Certamente, um ponto que merece destaque é a necessidade de se cancelar a Súmula 33 do STJ, cujo enunciado diz que “a incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”, uma vez que vai de encontro ao disposto pelo novo parágrafo 5º do art. 63 do CPC.
Por fim, outro grande desafio a ser enfrentado pelo poder judiciário diz respeito ao direito intertemporal, visto que a nova lei não traz nenhuma regra específica. Assim, ainda deverá ser definido o que fazer com os processos em curso cuja competência já foi definida em razão de cláusula de eleição de foro, e com as cláusulas já vigentes cujos negócios jurídicos ainda não foram objeto de judicialização.
Mais informações podem ser obtidas com a equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
Artur Cronemberger
Advogado da Equipe Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PROCESSUAL. Nota técnica ao Projeto de Lei nº1.803/2023 da Câmara dos Deputados. São Paulo, 2023.
(2) Como revela Murilo Teixeira Avelino, o art. 62 do Regulamento nº 737/1850 que sistematizou o processo civil no período imperial já trazia a previsão da cláusula de eleição de foro. AVELINO, Murilo Teixeira. Modificações no art. 63 do CPC via Lei 14.879/24: 6 pontos de preocupação. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/modificacoes-no-art-63-do-cpc-via-lei-14-879-24-6-pontos-de-preocupacao/. Acesso em: 25 jun. 2024.
(3) MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. v. 1. 3. ed. Revista dos Tribunais, 2017, p. 408.
(4) NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 274.
(5) Informativo 557/STJ, 3ª Turma, REsp 1.491.040, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 10/03/2015. Disponível em: https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/informjurisdata/article/view/3970/4194. Acesso em: 25 jun. 2024.
(6) Veja os precedentes: AgInt no AREsp 2.450.317/PI, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, DJe de 17/4/2024; AgInt no AREsp 1.605.331/RO, Rel. Min. Raul Araújo, 4ªTurma, DJe de 24/11/2020; AgInt no AREsp 1.337.742/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe de 08/04/2019.
(7) AVELINO, Murilo Teixeira. Modificações no art. 63 do CPC via Lei 14.879/24: 6 pontos de preocupação. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/modificacoes-no-art-63-do-cpc-via-lei-14-879-24-6-pontos-de-preocupacao/. Acesso em: 25 jun. 2024.
(8) Para mais informações, acesse: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/nucleos-de-justica-4-0/. Acesso em: 25 jun. 2024.
(9) As trocas colaborativas de juízes, intensificadas pela concertação de atos (art. 69, IV do CPC), tornou o sistema de competências mais flexível, permitindo variadas alterações de competência: para a produção de provas, efetivação de tutela provisória, execução de decisão jurisdicional, habilitação de créditos em recuperação judicial, dentre outros.
(10) CABRAL, Antônio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 28.