Marco Legal das Garantias: destrinchando alguns conceitos trazidos pela Lei nº 14.711/2023
Luisa Teixeira de Assis e Fernanda Marra Vidigal
A Lei nº 14.711/2023, publicada em 30 de outubro de 2023 e conhecida como “Marco Legal das Garantias” (1), buscou aprimorar as regras relacionadas às garantias por meio de alterações na legislação, em prol de maior segurança jurídica e eficiência econômica. Com disposições que visam a robustecer e, ao mesmo tempo, simplificar o sistema de constituição de garantias, espera-se aumento na oferta de crédito, condições mais favoráveis para financiamentos e ambiente de negócios mais dinâmico e seguro.
Alterações de destaque trazidas pela Lei nº 14.711/2023
A alienação fiduciária superveniente
A alienação fiduciária de propriedade superveniente era tema controvertido antes do Marco Legal das Garantias, uma vez que não havia previsão expressa na legislação e a jurisprudência não era uníssona no sentido de permitir ou não essa espécie de garantia. Com a nova lei, foram incluídos os parágrafos 3º e 4º no artigo 22 da Lei nº 9.514/1997 (2), trazendo a possibilidade da alienação fiduciária de propriedade superveniente.
Mas, afinal, o que significa essa alteração? Significa que o devedor fiduciante poderá alienar a propriedade fiduciária de bem imóvel que já estiver alienado fiduciariamente em garantia de dívida anterior. Ou seja, o mesmo imóvel poderá ser objeto de garantia em diferentes operações e, em caso de excussão, todos os credores terão direito ao recebimento do produto da venda do imóvel, tendo as alienações fiduciárias anteriores prioridade em relação às posteriores.
Para ilustrar o exposto acima, imagine-se que certa Companhia entregou imóvel de sua propriedade em alienação fiduciária em garantia de operação de crédito para financiamento obtido junto ao Banco X. Após cinco anos de tal operação, a Companhia, visando à obtenção de recursos para financiar novo projeto, precisou contratar novo empréstimo. Para concessão do respectivo valor, o Banco Y requereu garantia real, sendo o imóvel já alienado fiduciariamente em favor do Banco X o único imóvel da Companhia capaz de garantir a dívida com o Banco Y.
Com a nova previsão trazida pelo Marco Legal das Garantia, a Companhia poderá constituir a alienação fiduciária de propriedade superveniente do imóvel em favor do Banco Y para obter o novo financiamento necessário. A eficácia da alienação fiduciária superveniente, no entanto, estará subordinada ao cancelamento da propriedade fiduciária constituída anteriormente.
Assim, seguindo o exemplo narrado, uma vez quitada a dívida com o Banco X, a alienação fiduciária da propriedade do imóvel será automaticamente constituída em favor do Banco Y.
Ademais, caso a Companhia entre em mora com o Banco X e este venha a excutir a garantia sobre o imóvel, alienando-o a terceiros, o Banco Y se sub-rogará no direito da Companhia de receber os valores obtidos com a venda após a quitação da dívida do Banco X. O Banco Y figurará, portanto, como espécie de credor de segundo grau.
A alienação fiduciária da propriedade superveniente se assemelha ao que já era previsto para hipotecas e penhores, que admitem a constituição de garantias em graus sucessivos em favor de diferentes credores. A questão era controvertida para o instituto da alienação fiduciária devido ao fato de que, nessa modalidade de garantia real, ocorre a transferência da propriedade resolúvel do bem para o credor, que se torna possuidor direto da coisa. Assim, não se concebia a alienação fiduciária superveniente, pois o credor sucessivo não poderia obter a posse do bem, que já estaria com o credor de primeiro grau.
Foi para contornar esse problema que o legislador do Marco Legal das Garantias condicionou a eficácia da alienação fiduciária da propriedade superveniente ao cancelamento da garantia anterior. A previsão soluciona situação comumente observada de discrepância entre o valor das dívidas garantidas e o valor do imóvel dado em garantia que, muitas vezes, é superior. Agora, esse valor sobejante do bem poderá ser aproveitado para garantir outras operações, trazendo maior eficiência para o instituto da alienação fiduciária.
Extensão ou recarregamento da alienação fiduciária ou da hipoteca
Outra importante possibilidade trazida pelo Marco Legal das Garantias foi o chamado “recarregamento” da alienação fiduciária ou hipoteca, por meio da nova previsão do artigo 1.487-A da Lei nº 10.406/2022 (“Código Civil”), bem como dos artigos 9º-A a 9º-D da Lei nº 13.476/2017, e do item 37 do inciso II do artigo 167 da Lei nº 6.015/1973.
O recarregamento da alienação fiduciária ou da hipoteca é a possibilidade de o devedor garantir novas obrigações perante o mesmo credor utilizando o mesmo bem. Contudo, deverão ser respeitados o prazo e o valor amortizado da primeira garantia contratada.
A título de exemplo, considere-se uma dívida originária de R$1.000.000,00 com prazo para pagamento de dez anos, garantida por alienação fiduciária ou hipoteca de imóvel de mesmo valor. Suponha-se que, após o transcurso de cinco anos, o devedor tenha quitado R$400.000,00 dessa dívida.
Nesse cenário, o valor já amortizado poderá ser aproveitado para a contratação de nova operação de crédito com o mesmo credor. Portanto, a alienação fiduciária ou hipoteca poderá ser estendida para garantir nova dívida de até R$400.000,00 (quatrocentos mil reais) com um prazo de até cinco anos. Para tanto, bastará a averbação da extensão da garantia na matrícula do imóvel.
Antes do Marco Legal das Garantias, o imóvel de R$1.000.000,00 do exemplo acima permaneceria onerado em garantia do saldo devedor de R$600.000,00, não podendo a diferença ser utilizada para cobrir outra obrigação com aquele credor (3).
Há que se diferenciar algumas características entre o recarregamento da alienação fiduciária e o da hipoteca. Conforme as novas previsões do Marco Legal das Garantias, esse “refil” da alienação fiduciária não será permitido caso haja obrigação contratada com credor diverso garantida pelo mesmo imóvel. Tal restrição não é aplicável para a hipoteca.
Além disso, a extensão da alienação fiduciária somente poderá ser efetuada em operações de crédito envolvendo instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional ou Empresas Simples de Crédito. No caso da hipoteca, o recarregamento poderá ser negociado com qualquer credor.
Por fim, há regra expressa determinando que, na extensão da alienação fiduciária sobre bem imóvel, o inadimplemento de qualquer das obrigações garantidas permite que a instituição credora considere vencidas antecipadamente as demais obrigações vinculadas à mesma garantia, podendo exigir a totalidade da dívida do devedor. Essa hipótese de vencimento antecipado não foi prevista na nova lei para o recarregamento da hipoteca, o que não impede, porém, que seja fixado contratualmente entre as partes.
A execução extrajudicial da hipoteca
O Marco Legal das Garantias trouxe, ainda, a possibilidade de execução extrajudicial da hipoteca (4). Apesar dessa alternativa não ser inovadora, uma vez que o Capítulo III do Decreto-Lei nº 70/1996, agora revogado, já previa essa espécie de execução, o Marco Legal das Garantias expandiu a sua aplicação para qualquer hipoteca e estabeleceu formalidades a serem observadas.
O procedimento da execução extrajudicial de créditos hipotecários disposto no artigo 9º da nova lei é semelhante ao da alienação fiduciária (5), sendo realizado perante o Cartório de Registro de Imóveis. O devedor será notificado para purgar a mora no prazo de quinze dias e, caso não o faça, restará autorizado o início da excussão extrajudicial, sendo realizado o leilão público do imóvel hipotecado.
Conforme disposto no parágrafo 15º do referido artigo 9º do Marco Legal das Garantias, constitui requisito de validade do título constitutivo da hipoteca a expressa previsão do procedimento descrito em tal artigo. A partir de agora, os instrumentos que instituírem hipoteca deverão obrigatoriamente dispor sobre a possibilidade de excussão extrajudicial, sob pena de nulidade.
A intenção do legislador parece ser retomar a constituição de garantias hipotecárias, que vinham sendo preteridas pela alienação fiduciária, justamente por esta permitir a excussão extrajudicial, procedimento que assegura maior rapidez e eficiência para a proteção do investidor (6).
No contexto empresarial e econômico, as garantias desempenham papel crucial de viabilizar investimentos e financiamentos, pois proporcionam a segurança necessária para a realização de transações financeiras e comerciais, estimulam o acesso ao crédito, e promovem confiança no mercado. As alterações introduzidas pelo Marco Legal das Garantias prometem aumentar a eficiência, facilitar procedimentos de registro de garantias, bem como reduzir custos inerentes às operações de crédito.
Luisa Teixeira de Assis
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Fernanda Marra Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) A visão geral do Marco Legal das Garantias foi objeto de análise pelo VLF no artigo “Marco Legal das Garantias: contexto, visão geral e reflexões iniciais sobre hipoteca e alienação fiduciária”, disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2659.
(2) A Lei nº 9.514/1997 dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.
(3) No caso da hipoteca, seria possível a constituição da hipoteca de segundo grau, que já era prevista pelo Código Civil. No entanto, isso demandaria a contratação e o registro de nova garantia na matrícula imobiliária. A possibilidade de averbação do mero recarregamento da mesma garantia na matrícula do imóvel tende a ser mais célere e menos custosa para as partes.
(4) Inclusão do artigo 9º do próprio Marco Legal das Garantias, bem como dos artigos 8º-B e 8º-C do Decreto nº 911/1969, artigos 11-A e 26-A da Lei nº 9.492/1997 e do artigo 7º-A da Lei nº 8.935/1994.
(5) Previsto nos artigos 26 e seguintes da Lei nº 9.514/1997.
(6) Após a publicação do Marco Legal das Garantias, foram ajuizadas ações diretas de inconstitucionalidade questionando a execução extrajudicial da hipoteca. No entanto, o Supremo Tribunal Federal tem sido favorável à desjudicialização da execução, consoante já decidiu ao analisar caso envolvendo alienação fiduciária em garantia nos contratos do Sistema de Financiamento Imobiliário: STF, RE 860631, relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2023.