Afinal, quais são as hipóteses de cabimento do dano moral coletivo?
Lucas Santos Auer
A possibilidade de reparação por lesões extrapatrimoniais individuais é situação conhecida e difundida em todo o país. Há muito, milhões de brasileiros buscam socorro no Poder Judiciário, postulando o direito ao recebimento de indenização decorrente de atos ilícitos que, ao menos potencialmente, ferem os direitos da personalidade. Ao longo do tempo, legislação e jurisprudência caminharam para sedimentar a possibilidade de que pessoas jurídicas também podem sofrer dano moral, quando comprovada lesão à sua imagem, credibilidade e reputação perante terceiros.
Por outro lado, há categoria autônoma de dano menos comum a maioria das pessoas. Trata-se do chamado “dano moral coletivo”, que passou a receber tutela jurídica no ordenamento jurídico brasileiro apenas no fim do século XX, sendo assim definido pela doutrina:
O estudo do dano difuso é de extrema importância por estar intimamente relacionado com os direitos e interesses difusos e coletivos. Assim como a lesão de um bem jurídico de titularidade individual caracteriza o dano comum, o que caracteriza o dano difuso ou coletivo é a lesão de um bem jurídico de titularidade coletiva. Foi por isso que o dano, antes restrito às pessoas físicas ou jurídicas, veio a ser reconhecido em face de grupos, categorias, classes ou mesmo de toda a coletividade, obrigando a responsabilidade civil a ampliar os seus domínios no sentido da reparação dos danos coletivos. A tutela dos direitos e interesses difusos e coletivos só se tornou possível a partir do momento em que o nosso ordenamento jurídico reconheceu a coletividade de pessoas como sujeito de direito, mesmo não sendo pessoa jurídica nos moldes clássicos concebidos pelo Direito. Foi pioneiro nessa evolução o Código de Defesa do Consumidor que, no parágrafo único do seu art. 2º, equiparou ‘a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo’. Bem depois, a Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 211 (Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), no parágrafo único do seu art. 1º, dispõe expressamente que ‘A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei.’. Destarte, por expressa determinação legal, a coletividade – globalmente considerada ou em qualquer de seus segmentos (grupos, categorias ou classes) – passou à condição de titular de direitos ou interesses jurídicos (1).
Não raro, porém, o instituto é incorretamente empregado por operadores do Direito que desejam ver satisfeito o direito à reparação por um somatório de danos individuais. Todavia, o dano moral coletivo somente se caracteriza mediante a ocorrência de lesão grave, injusta e intolerável à moralidade pública ou a valores e a interesses fundamentais de toda a sociedade, de natureza transindividual.
A Constituição Federal de 1988 disciplina inúmeros direitos cujos sujeitos são a coletividade difusa, indeterminada. Portanto, o cabimento do dano moral coletivo pode estar relacionado às mais variadas hipóteses de violação de valores coletivos, como, por exemplo, o meio ambiente (estendido para a qualidade de vida, equilíbrio ecológico, dentre outras nuances), o patrimônio histórico e artístico, a honra de comunidades (negra, indígena, LGBTQIAPN+ etc.), a moralidade dos serviços públicos e aos direitos do consumidor.
Acerca dos direitos do consumidor, merece especial destaque o advento da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor, ou, simplesmente “CDC”). A lei, nos dizeres da Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) (2), pode ser considerada “divisor de águas” no enfrentamento ao tema, notadamente em razão da criação de sistema inovador de tratamento de interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos. Senão vejamos trecho do judicioso voto proferido por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 636.021/RJ:
Ao falar de interesses individuais homogêneos, indica-se a existência de uma pluralidade de direitos subjetivos individuais que, violados por uma origem comum, aceitam uma tutela jurisdicional coletiva. Por outro lado, os direitos coletivos e difusos são, em verdade, transindividuais e têm objeto indivisível, de forma que a satisfação de um indivíduo significa necessariamente a satisfação de um grupo de pessoas ou de toda a coletividade. O art. 81, CDC, rompe, portanto, com a tradição jurídica clássica, onde só indivíduos haveriam de ser titulares de um interesse juridicamente tutelado ou de uma vontade protegida pelo ordenamento. Criam-se direitos cujo sujeito é uma coletividade difusa, indeterminada, que não goza de personalidade jurídica e cuja pretensão só pode ser satisfeita quando deduzida em juízo por representantes adequados.
O citado artigo 81 do diploma consumerista veio garantir que a “a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo”. O parágrafo único e incisos que o sucedem ainda dispõem sobre as hipóteses de cabimento da defesa coletiva, reforçando a proteção aos interesses ou direitos difusos, coletivos ou homogêneos. A legislação, promulgada apenas em 1990, trouxe como novidade a ruptura com a lógica legislativa então vigente, que não (ou muito pouco) privilegiava a tutela dos direitos supraindividuais.
Com o passar dos anos, os tribunais superiores estabeleceram diretrizes para a aplicação prática do dano moral coletivo.
Ao julgar ação civil pública no ano de 2012, o STJ confirmou a decisão de segunda instância que impôs a um banco a obrigação de instalar caixa para atendimento de idosos, gestantes e pessoas com deficiência no andar térreo, além de pagar indenização de R$ 50 mil como reparação de danos morais coletivos (3). Naquela hipótese, em agência de Cabo Frio (RJ), as pessoas com prioridade precisavam subir três lances de escada, no total de 23 degraus, para serem atendidas no caixa especial. O Ministério Público considerou essa circunstância vexatória e degradante para os cidadãos com necessidades especiais, tese que foi acolhida pelo Poder Judiciário.
Noutro giro, ao analisar outra ação civil pública, desta vez em 2024, o mesmo STJ decidiu que não haveria que se falar em dano moral coletivo pelo descumprimento, pelas instituições financeiras, da legislação que lhes impunha determinada forma de atendimento ao consumidor (4). No caso analisado, a queixa se pautava na ausência de sanitários exclusivos para os clientes nas agências bancárias; na falta de consignação dos horários de entrada nas senhas dos caixas; e, na inobservância do tempo de quinze minutos de espera nas filas do caixa. Os julgadores, contudo, para além de concluírem que tais aspectos não transcendem o mero aborrecimento para uma esfera de abalo de valores coletivos, pontuaram que o mais adequado seria a adequação do dano aos atos praticados por cada uma das instituições financeiras.
Outro relevante aspecto consolidado pela jurisprudência diz respeito ao caráter in re ipsa conferido ao dano moral coletivo. Isso é, a sua configuração decorre “da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral” (5).
Também são frequentes as dúvidas sobre o destinatário final da reparação pecuniária e a legitimidade do receptor. Diferentemente do que ocorre nas hipóteses em que são tutelados direitos individuais, os valores das indenizações não são endereçados a pessoas específicas, mas para fundos ou instituições que possam efetivamente reverter a quantia em prol da coletividade.
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Lucas Auer
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 123.
(2) (STJ, 3ª Turma, REsp nº. 636.021/RJ, Relatora Min. Nancy Andrighi, DJe de 6/3/2009)
(3) STJ, 3ª Turma, REsp nº. 1.221.756/RJ, Relator Min. Massami Uyeda, DJe de 10/02/2012)
(4) STJ, 4ª Turma, REsp n. 2.128.214/PR, Relator Min. João Otávio de Noronha, DJe de 16/5/2024)
(5) STJ, 4ª Turma, REsp nº. 1.517.973/PE, Relator Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 1/2/2018)