X versus STF: considerações sobre a participação de estrangeiros em atividades empresariais no Brasil
Ana Paula Dalpizzol, Letícia Camargos Ferraz e Raul Celistre de Oliveira Freitas
Em decisão monocrática recente, proferida no âmbito da Petição nº 12.404/DF, posteriormente referendada pelo colegiado da Primeira Turma, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) determinou o bloqueio em todo território nacional da rede social X (ou Twitter) (1).
No Brasil, a plataforma é representada pela X Brasil Internet Ltda. (“X Brasil”), que possui como quotistas a T.I. Brazil Holdings LLC e a Twitter International Unlimited Company, com sedes nos Estados Unidos e na República da Irlanda, respectivamente (2).
O caso, que tramita sob sigilo, trata de investigação encaminhada ao STF em relação à prática de crimes de obstrução de investigações sobre organização criminosa e de incitação ao crime, que supostamente estariam sendo perpetrados por usuários dentro do X. Como medida assecuratória das investigações, o STF determinou à X Brasil o bloqueio de determinados perfis da plataforma, baseando a decisão na Lei nº 12.965/2014 (“Marco Civil da Internet” ou “MCI”).
Ocorre que, no dia seguinte à reiteração da ordem, Elon Musk, sócio majoritário da Twitter International Unlimited Company, manifestou-se em sua conta oficial na plataforma informando que encerraria as atividades da X Brasil, mas manteria o acesso ao serviço por ela prestado (3). A Corte entendeu que a conduta configuraria evasão dolosa ao cumprimento da legislação nacional e das ordens judiciais expedidas no país e intimou as sociedades integrantes do Grupo X para que nomeassem representante legal da X Brasil.
As intimações foram realizadas por meios eletrônicos (e-mail e WhatsApp) e direcionadas aos representantes da Starlink (considerada, pela comentada decisão do STF, como integrante do mesmo grupo econômico da X Brasil) (4) e à advogada da X Brasil, assim como às quotistas da X Brasil. Elon Musk, por sua vez, foi intimado em sua conta oficial no X, para a qual a conta oficial do STF encaminhou o mandado de intimação, publicamente (5). As sociedades envolvidas não nomearam representante no Brasil no prazo determinado, e, em face disso, o STF fez valer a pena de imediata suspensão das atividades da rede social “até que as ordens judiciais fossem efetivamente cumpridas e as multas diárias quitadas”.
O imbróglio entre as detentoras da plataforma e o STF foi assistido pelo Brasil e pelo mundo e culminou no efetivo bloqueio do X no Brasil. O caso, que divide opiniões e possui diferentes recortes políticos, também se destaca por seus pormenores jurídicos. Assim, sem adentrar no mérito dos processos que tramitam no STF envolvendo o X, o presente artigo tem como objetivo refletir sobre o caso do ponto de vista formal.
Isso, porque a situação X versus STF toca em pontos relacionados a validade de citações, requisitos para que sociedades estrangeiras e sociedades brasileiras controladas por estrangeiros atuem no Brasil e contornos da aplicação do Marco Civil da Internet.
Representação de sociedades no Brasil
Para uma análise adequada do fundamento da decisão do STF que determinou a indicação de representante legal da X Brasil, é importante compreender quais são os agentes econômicos envolvidos na estrutura societária do X e seus respectivos papéis nas distintas condições de sociedades, sócios, administradores ou procuradores.
A Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”) estabelece que as sociedades nacionais são aquelas organizadas em conformidade com a lei brasileira e que tenham a sede da administração no país (6). Como requisito obrigatório para constituição e funcionamento, as sociedades brasileiras devem ter pessoa natural incumbida de administrar a sociedade (7). Sem administrador, a sociedade não tem capacidade para ser representada judicial e extrajudicialmente (8).
Em regra, não há obrigatoriedade para que as sociedades brasileiras sejam controladas por outras pessoas (físicas ou jurídicas) brasileiras. Pelo contrário, o ordenamento jurídico autoriza que entidades ou cidadãos estrangeiros participem do quadro de sócios de sociedades brasileiras, o que estimula o ingresso de investimentos externos no Brasil, conforme abordado no Informativo VLF nº 90/2022 (9).
No caso do grupo econômico do X, existe sociedade limitada sediada e estabelecida no Brasil, constituída sob as leis brasileiras sob a denominação de X Brasil Internet Ltda. e inscrita no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (“CNPJ”) da Receita Federal do Brasil (“Receita Federal”). Trata-se, portanto, de sociedade nacional controlada por estrangeiro, de forma que as suas sócias, ainda que constituídas sob as leis de outros países, devem cumprir determinadas obrigações da legislação brasileira.
Uma dessas obrigações é a de nomear representante legal residente no Brasil com poderes para administrar seus bens e direitos, receber citação e representar a sociedade perante os órgãos públicos (10). Essa obrigação, assim como a obrigação de manter cadastro no Banco Central do Brasil (11) e a de se inscrever no CNPJ (12), é aplicável a todas as sociedades estrangeiras que tenham participação em sociedades brasileiras, já que elas podem responder por obrigações da sociedade em determinadas hipóteses.
A estrutura societária do X no Brasil é composta por três pessoas jurídicas distintas, isto é, pela X Brasil, sociedade estabelecida no Brasil, e por suas sócias, T.I. Brazil Holdings LLC e a Twitter International Unlimited Company, sediadas no exterior. Todas elas devem possuir representante legal no Brasil.
Essa situação não se confunde com a hipótese de uma sociedade estrangeira funcionar diretamente no Brasil. Nesses casos, não há constituição de sociedade no Brasil e apenas ocorre a extensão ao Brasil das operações negociais exploradas no país estrangeiro (13), o que é feito a partir da instalação de filial, agência, sucursal ou estabelecimento no Brasil, que ficará sujeito aos Tribunais e leis brasileiras (14).
Assim, os procedimentos são diferentes dos descritos acima e a entidade estrangeira deve ser autorizada a funcionar no Brasil por meio de ato do Poder Executivo, notadamente do Departamento de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) (15), além de nomear representante no Brasil com poderes para receber citações (16).
No caso do X, o mandado de intimação encaminhado na rede social determinou inicialmente a nomeação de representante legal da própria X Brasil. Ou seja, era a própria sociedade nacional que estava irregular ante a ausência de administrador.
Aplicação do Marco Civil da Internet
Antes mesmo do recebimento do mandado de intimação, o sócio controlador do Grupo X declarou que iria encerrar as atividades da X Brasil, mas afirmou que, a despeito disso, a rede social continuaria funcionando no país. Diante dessa situação, o STF entendeu pela aplicação das disposições do Marco Civil da Internet.
Mas o que diz a lei? O MCI estabelece que as empresas que oferecem serviços de internet no Brasil estão sujeitas à legislação brasileira, ainda que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que o serviço seja ofertado ao público brasileiro ou haja um estabelecimento empresarial do grupo econômico no Brasil (17). Também é possível que ordens judiciais sejam expedidas para os provedores da internet requerendo a indisponibilidade de conteúdo apontado como infringente (como foi o caso nas investigações em comento). O MCI ainda dispõe que o provedor de aplicações de internet somente pode ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o ato objeto da ordem (18).
Portanto, mesmo que a X Brasil fosse extinta, as pessoas jurídicas sediadas no exterior responsáveis pela plataforma deveriam respeitar as leis brasileiras para a rede social continuar funcionando no país. Logo, tanto as entidades estrangeiras quanto as nacionais devem cumprir as ordens judiciais de indisponibilidade de conteúdo armazenados nas plataformas digitais. As consequências desse descumprimento, nos termos do MCI, incluem a aplicação de multas, suspensão temporária ou até mesmo a proibição das atividades da plataforma no Brasil (19).
Validade da intimação
A intimação de Musk, instrumentalizada por meio do próprio X, suscitou uma série de questionamentos. Embora seja sócio da controladora da X Brasil, Musk não é o administrador da referida empresa. O STF, porém, entendeu que ele poderia receber a intimação por ser controlador direto das sócias da X Brasil e indireto da X Brasil.
Não se deve desconsiderar, ainda, a possibilidade de intimações por meio eletrônico (20) e a instrumentalidade das formas (21)(22), somados à “Teoria da Aparência”, que conferem validade a atos processuais desse tipo, considerando a postura adotada por Musk como proprietário e representante do “X” (23) – que deu ciência inequívoca da intimação.
O mais correto, no entanto, seria a expedição de carta rogatória às autoridades estrangeiras para intimação dos administradores das sociedades estrangeiras (24).
Em síntese, é inegável que a escolha do STF de utilizar o X como meio de intimação representa abordagem atípica. Como consequência, há argumentos jurídicos contrários e favoráveis a essa intimação.
A decisão do STF aqui discutida levanta questões sobre a segurança jurídica e a observância dos ritos processuais, mas reflete, sobretudo, os desafios inerentes à aplicação do Direito em contexto digital, marcado pela presença de agentes econômicos de diversas jurisdições no controle de plataformas disponíveis ao público brasileiro. É, ainda, relevante precedente para os critérios de aplicação do MCI no Brasil.
Ana Paula Dalpizzol
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Letícia Camargos Ferraz
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Raul Celistre de Oliveira Freitas
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Decisão proferida na Petição nº 12.404 – DF em 30 de agosto de 2024 pelo Relator Ministro Alexandre de Moraes. Disponível em: https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2024/08/30171714/PET-12404-Assinada.pdf. Acesso em: 16 set. 2024.
(2) Conforme informações extraídas dos respectivos cartões CNPJ e atos registrados da X Brasil na Junta Comercial do Estado de São Paulo – JUCESP.
(3) X, antigo Twitter, fecha escritório no Brasil. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/08/17/x-antigo-twitter-fecha-escritorio-no-brasil. Acesso em: 18 set. 2024.
(4) Pela extensão do tema e necessidade de delimitação de objeto de pesquisa, não será objeto do presente artigo a análise jurídica acerca da existência (ou não) de grupo econômico no caso avaliado pelo STF.
(5) Mandado de intimação assinado em 28 de agosto de 2024 pelo Ministro Alexandre de Moraes. Disponível em: https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2024/08/28204855/Mandado-Intimacao-12404-1.pdf. Acesso em: 16 set. 2024.
(6) Código Civil. Artigo 1.126: “É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sua sede de administração.”
(7) Código Civil. Artigo 997: “A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: VI - as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições.”
(8) Código Civil. Artigo 1.022: “A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador.”
(9) Informativo VLF 90/2022. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=1016. Aceso em: 16 set. 2024.
(10) Lei nº 6.404/1976. Artigo 119: “O acionista residente ou domiciliado no exterior deverá manter, no país, representante com poderes para receber citação em ações contra ele, propostas com fundamento nos preceitos desta lei.”
Instrução Normativa RFB nº 2.119/2022. Artigo 6º, §1º: “No caso de entidade domiciliada no exterior o representante no CNPJ deve ser seu procurador ou representante legalmente constituído e domiciliado no Brasil, com poderes para administrar bens e direitos da entidade no País e representá-la perante a RFB.”
Instrução Normativa DREI nº 81/2020. Artigo 12: “A pessoa física, brasileira ou estrangeira, residente no exterior, que seja empresário individual, titular de EIRELI, sócio de sociedade empresária ou associado de cooperativa, poderá arquivar na Junta Comercial, desde que em processo autônomo, procuração outorgada ao seu representante no Brasil, observada a legislação que rege o respectivo tipo societário.”
(11) Lei nº 14.286/2021. Artigo 10: “Compete ao Banco Central do Brasil: I – regulamentar e monitorar os capitais brasileiros no exterior e os capitais estrangeiros no País quanto a seus fluxos e estoques; II – estabelecer procedimentos para as remessas referentes ao capital estrangeiro no País, observada a legislação, a fundamentação econômica das operações e as condições usualmente observadas nos mercados internacionais.”
(12) Instrução Normativa RFB nº 2.119/2022. Anexo I: “Entidades obrigadas a se inscrever no CNPJ: XVI – as entidades domiciliadas no exterior que, no País: a) sejam titulares de direitos sobre: 7. Participações societárias constituídas fora do mercado de capitais.”
Instrução Normativa RFB nº 2.119/2022. Artigo 19: “A inscrição no CNPJ de entidade domiciliada no exterior nas hipóteses previstas no subitem 7 da letra “a” e na letra “b” do item XVI e no item XVII do Anexo I decorre automaticamente do seu cadastramento no Cadastro Declaratório de Não Residentes (CDNR) do Bacen, vedada a apresentação da solicitação de inscrição em unidade cadastradora da RFB.”
(13) Conforme Nota Técnica SEI nº 8.286/2020 do DREI.
(14) Conforme Nota Técnica SEI nº 8.286/2020 do DREI e Instrução Normativa nº 77/2020 do DREI. Ressalva-se os casos em que a atividade a ser exercida atrai a competência de autorização para outros órgãos do Poder Executivo.
(15) Código Civil. Artigo 1.137. “A sociedade estrangeira autorizada a funcionar ficará sujeita às leis e aos tribunais brasileiros, quanto aos atos ou operações praticados no Brasil.”
(16) Código Civil. Artigo 1.138. “A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade.”
Lei nº 13.105/2015. Artigo 75: “Serão representados em juízo, ativa e passivamente: X – a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.”
(17) Marco Civil da Internet. Artigo 11. “Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. § 2º O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.”
(18) Marco Civil da Internet. Artigo 19. “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
(19) Conforme artigo 12 do Marco Civil da Internet.
(20) Conforme artigo 270 do CPC.
(21) STJ, Recurso Especial nº 1.370.903 - MG, 2013/0053864-8. “O sistema das nulidades processuais em nosso ordenamento jurídico é orientado pelo princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais, segundo o qual o ato só será considerado nulo se, além da inobservância da forma legal, não tiver alcançado a sua finalidade.”
(22) Conforme artigo 277 do CPC.
(23) STJ. Assim é, se lhe parece: a teoria da aparência nos julgados do STJ. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25042021-Assim-e--se-lhe-parece-a-teoria-da-aparencia-nos-julgados-do-STJ.aspx. Acesso em: 27 set. 2024.
(24) STJ. Cooperação Jurídica Internacional. Disponível em: https://international.stj.jus.br/pt/Cooperacao-Internacional/Cooperacao-Juridica-Internacional. Acesso em: 27 set. 2024.