Alienação fiduciária e hipoteca: distinções e vantagens práticas no Direito brasileiro à luz do Marco Legal das Garantias
Fernanda Vidigal e Luisa Assis
Em recentes artigos publicados pelo VLF Advogados, foram analisadas as alterações e novidades trazidas pelo Marco Legal das Garantias (1), em especial no que diz respeito aos institutos da hipoteca e da alienação fiduciária (2). A nova legislação reaviva algumas dúvidas: quais as principais diferenças entre a alienação fiduciária e a hipoteca? Qual é a melhor opção a ser utilizada? Diante disso, o presente artigo buscou analisar as implicações jurídicas e práticas de cada uma dessas garantias reais e tentar responder essas questões.
A alienação fiduciária (3) é a modalidade de garantia pela qual o devedor transfere a propriedade resolúvel de determinado bem ao credor, mantendo-se com a posse direta, até que a dívida seja quitada. Ocorrendo o pagamento, a propriedade do credor se resolve e o bem é devolvido para a esfera do devedor. Em caso de inadimplência, o credor pode retomar o bem e promover a sua venda, aplicando no pagamento da dívida o valor obtido.
Já na hipoteca (4), apesar de o bem ser gravado em garantia do pagamento de uma dívida, ele não é entregue ao credor, permanecendo sob o poder do devedor. Não há, portanto, a transferência da propriedade do bem, nem o desdobramento de sua posse.
Esta é a principal diferença entre as duas formas de garantia real: na alienação fiduciária, o credor se torna proprietário (ainda que de maneira resolúvel) do bem, o que não ocorre na hipoteca, em que o credor possui apenas preferência sobre o bem para a satisfação do seu crédito.
Até a publicação do Marco Legal das Garantias, havia outra relevante distinção entre as duas formas de garantia real: a alienação fiduciária podia ser executada extrajudicialmente por meio dos Cartórios de Registro de Imóveis (5), porém a execução da hipoteca dependia de procedimento judicial, sendo, portanto, processo mais lento e oneroso para o credor (6).
O legislador do Marco Legal das Garantias atribuiu a essa diferença entre os procedimentos de execução o motivo pelo qual a alienação fiduciária se tornou o modelo de garantia mais utilizado no Brasil (7), sendo adotada em mais de 90% das operações de crédito imobiliário, enquanto a hipoteca é usada em apenas 6% dessas operações (8).
Com o intuito de restabelecer o uso da hipoteca no mercado brasileiro, o Marco Legal das Garantias passou a prever a possibilidade da sua execução extrajudicial e buscou aproximar os procedimentos da hipoteca àqueles previstos para a alienação fiduciária (9).
As mudanças trazidas pelo novo diploma prometem aumentar a eficiência e a segurança jurídica das operações de crédito, reduzindo custos e simplificando os procedimentos de constituição e execução de garantias. Questiona-se, no entanto, se as alterações serão eficazes no sentido de estimular a utilização da hipoteca em detrimento da alienação fiduciária.
Tal questionamento decorre, principalmente, do tratamento dado à alienação fiduciária nas situações de falência e recuperação judicial de empresas.
Como visto, a alienação fiduciária implica na transferência da propriedade resolúvel do bem dado em garantia para o credor. O bem é excluído da esfera patrimonial do devedor e fica afetado ao cumprimento da obrigação garantida. Justamente em razão dessa transferência de propriedade ao credor, os bens garantidos por alienação fiduciária não se submetem aos efeitos da falência e da recuperação judicial do devedor (10).
Isso significa que o credor fiduciário pode executar a garantia, mesmo que a empresa devedora esteja em recuperação judicial ou tenha sua falência decretada, sem concorrer com os demais credores (11).
A extraconcursalidade dos créditos garantidos por alienação fiduciária foi, inclusive, reforçada pelo Marco Legal das Garantias que, ao prever a possibilidade de alienações fiduciárias sucessivas, dispôs expressamente que o disposto no art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005 é aplicável a todos os credores fiduciários, inclusive àqueles decorrentes das alienações fiduciárias supervenientes (12).
Desse modo, não apenas o credor fiduciário de primeiro grau, mas também os credores de segundo grau ou mais nas alienações fiduciárias sucessivas poderão executar a garantia sem se submeter ao concurso de credores da recuperação judicial e falência, observada a prioridade das alienações fiduciárias anteriores em relação às posteriores.
Trata-se, portanto, da principal vantagem da alienação fiduciária em relação à hipoteca. Nesta, uma vez que o bem dado em garantia permanece na esfera patrimonial do devedor, em caso de falência ou recuperação judicial, os créditos hipotecários são considerados concursais, devendo obedecer à ordem de pagamento legalmente estabelecida (13).
Na situação concreta, o que ocorre em caso de falência ou recuperação judicial é a apuração de todos os bens e direitos do devedor, bem como de todas as suas dívidas, de modo que o ativo existente seja utilizado para quitar o passivo, observada a classificação dos créditos.
Nesse cenário, eventual credor hipotecário deverá habilitar o seu crédito e aguardar o pagamento dos credores trabalhistas, correndo o risco de não restarem bens suficientes no patrimônio do devedor para a quitação de todo o passivo. Por outro lado, eventual credor fiduciário poderá executar a sua garantia e receber o seu crédito sem se submeter ao processo da falência ou recuperação.
As inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias tendem a aproximar os procedimentos da alienação fiduciária e da hipoteca, simplificando o processo de execução hipotecária ao prever procedimento extrajudicial mais célere e de menor custo. Contudo, diante das diferenças analisadas ao longo deste artigo, especialmente quanto à não submissão dos créditos garantidos por alienação fiduciária aos processos de falência e recuperação judicial, permanece a dúvida se, na prática, essas mudanças incentivarão o uso da hipoteca como forma de garantia ou se esse instituto seguirá em desuso.
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Luisa Assis
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14711.htm. Acesso em: 28 out. 2024.
(2) BARCELOS, Karem; BITENCOURT, Leila. Marco Legal das Garantias: contexto, visão geral e reflexões iniciais sobre hipoteca e alienação fiduciária. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2659. Acesso em: 28 out. 2024.
ASSIS, Luisa Teixeira de; VIDIGAL, Fernanda Marra. Marco Legal das Garantias: destrinchando alguns conceitos trazidos pela Lei nº 14.711/2023. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2844. Acesso em: 28 out. 2024.
(3) A alienação fiduciária é regulamentada: (i) pelos artigos 1.361 e seguintes do Código Civil; (ii) pela Lei nº 4.728/1965, que regula a alienação fiduciária em garantia no âmbito do mercado financeiro e de capitais, alterada pelo Decreto-Lei nº 911/1969; (iii) pela Lei nº 10.931/2004; (iv) pela Lei nº 13.043/2014; e (v) pela Lei nº 9.514/1997, que institui a alienação fiduciária sobre bem imóvel.
O instituto da alienação fiduciária foi destrinchado pelo artigo do VLF Advogados: MUNIZ, Gustavo; CAMPOS, Raphael de. Análise da Alienação Fiduciária como objeto de garantia contratual. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=872. Acesso em: 28 out. 2024.
(4) A hipoteca é regulada pela Lei nº 10.406/2002 (Código Civil) nos artigos 1.473 até 1.510.
(5) Artigo 26 e seguintes da Lei nº 9.514/1997.
(6) Sabe-se que o Decreto-Lei nº 70/1966 nos seus artigos 31 a 38 já previa a execução extrajudicial da hipoteca no âmbito do sistema Financeiro da Habitação, contudo, não havia unanimidade na jurisprudência quanto à legalidade do procedimento previsto nesses dispositivos. Em razão disso, muitos cartórios se recusavam a fazer a execução extrajudicial da hipoteca, de forma que restava ao credor recorrer ao procedimento judicial.
(7) Vide a exposição de motivos do anteprojeto de lei que deu origem ao Marco Legal das Garantias – EMI nº 242/2021 ME. Inclusive, a própria exposição de motivos menciona a insegurança jurídica decorrente da excussão da garantia hipotecária, veja-se: “Trata-se de situação derivada sobretudo da insegurança jurídica que envolve a excussão hipotecária. As previsões normativas contidas no Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, possuem falhas e estão desatualizadas, o que implica que a execução extrajudicial hipotecária seja frequentemente judicializada.”
(8) Conforme tratado na exposição de motivos – EMI nº 242/2021 ME: “Os aprimoramentos na Lei nº 9.514, de 1997, visam a dotar o modelo de alienação fiduciária, atualmente usado em mais de 90% das operações de crédito imobiliário, de maior segurança jurídica, previsibilidade e eficiência. Avalia-se que as alterações propostas fortalecerão as garantias e, por consequência, reduzirão os custos do crédito. Em relação à hipoteca, as alterações propostas objetivam recuperar o uso desse instrumento como modalidade de garantia de financiamento imobiliário. Embora a hipoteca seja o instrumento mais usado em outros países, no Brasil o mecanismo é usado em apenas 6% das operações de crédito imobiliário. Trata-se de situação derivada sobretudo da insegurança jurídica que envolve a excussão hipotecária. As previsões normativas contidas no Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, possuem falhas e estão desatualizadas, o que implica que a execução extrajudicial hipotecária seja frequentemente judicializada.”
(9) Tema aprofundado no Informativo VLF - 118/2024, de 30 de julho de 2024: ASSIS, Luisa Teixeira de; VIDIGAL, Fernanda Marra. Marco Legal das Garantias: destrinchando alguns conceitos trazidos pela Lei nº 14.711/2023. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2844. Acesso em: 28 out. 2024.
(10) Nos termos dos art. 49, §3º e art. 119, IX, da Lei nº 11.101/2005, do art. 7º do Decreto-lei nº 911/1969 e dos art. 20, § único e art. 32 da Lei nº 9.514/1997.
(11) Exceto no caso dos bens essenciais à atividade do devedor durante o chamado “stay period”. Nos termos do §3º do Artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, tais não poderão ser vendidos ou retirados do estabelecimento do devedor durante o período disposto no §4 do artigo 6º da mesma Lei.
(12) Nos termos do art. 22, § 10, da Lei nº 9.514/1997, inserido pelo Marco Legal das Garantias.
(13) Os credores hipotecários se classificam no rol daqueles gravados com direito real de garantia e, portanto, possuem preferência em relação aos demais créditos (art. 83, inciso II da Lei nº 11.101/2005), estando atrás somente dos créditos derivados da legislação trabalhista.