3ª Turma do STJ decide sobre a legitimidade das fundações para requerer recuperação judicial
Eduardo Metzker Fernandes e Fernanda de Figueiredo Gomes
A Lei nº 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência, estabelece em seus dispositivos iniciais quem são os sujeitos legitimados que podem se valer dos sistemas legais de reestruturação e falência lá dispostos:
Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.
Art. 2º Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
Como se vê, a redação do artigo 1º pressupõe limitação do alcance da lei ao empresário e à sociedade empresária; enquanto o artigo 2º cuida de especificar aqueles que não são tutelados pela lei.
A interpretação literal desses dispositivos leva à conclusão de que os sujeitos que não se enquadram no conceito de empresário e de sociedade empresária e não estão expressamente mencionados no artigo 2º da Lei nº 11.101/2005, como as associações civis e as fundações, não teriam legitimidade para pedir recuperação judicial.
Acontece que não há jurisprudência pacífica sobre o tema, sendo possível encontrar precedentes contrários à legitimidade desses sujeitos e outros a favor do deferimento do processamento das recuperações judiciais, ao menos a título precário, sendo estes últimos os de maior prevalência até o momento.
Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) se manifestou a respeito da controvérsia nos recursos especiais nº 2.036.410 e nº 2.155. 284, ambos decorrentes de decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (“TJMG”).
No REsp nº 2.036.410, a 7ª Câmara Cível do TJMG havia indeferido o processamento do pedido de recuperação judicial da Fundação Educacional Monsenhor Messias (“FEMM”) por considerá-la ilegítima. Já no REsp nº 2.155.284, em sentido inverso, a 21ª Câmara Cível do TJMG entendeu por permitir o processamento de pedido formulado pela Fundação Comunitária Tricordiana de Educação por considerar que o exercício de atividade econômica pela requerente a tornaria legítima para se valer do instituto da recuperação judicial.
Ao julgar ambos os recursos, a 3ª Turma do STJ, em decisão não unânime, adotou o entendimento da 7ª Câmara Cível do TJMG, considerando que as fundações não teriam legitimidade para apresentar pedido de recuperação judicial.
O entendimento majoritário embasou-se em três argumentos principais: i) o artigo 1º, da Lei nº 11.101/2005 restringe o acesso à recuperação judicial ao empresário e à sociedade empresária, não incluindo fundações sem fins lucrativos; ii) a imunidade tributária da qual se beneficiam as fundações já representa ônus à sociedade, de forma que não seria justificável que essas pessoas jurídicas também se beneficiem do instituto da recuperação judicial em prejuízo à coletividade de credores; iii) o deferimento da recuperação judicial violaria a segurança jurídica, já que haveria alteração na alocação de risco realizada pelos agentes do mercado que mantinham relação jurídica com a fundação.
O Ministro Moura Ribeiro, que ficou vencido, registrou o seu entendimento acerca da legitimidade das fundações para apresentar pedido de recuperação judicial, em posicionamento que embasou-se nos seguintes fundamentos: i) as fundações exercem atividade econômica, gerando emprego e renda, apesar de não distribuírem lucro entre seus membros; ii) o instituto da recuperação judicial busca justamente a preservação da atividade econômica, que gera benefícios sociais e econômicos; iii) as fundações não foram expressamente excluídas do rol dos agentes que podem usufruir da recuperação judicial; iv) as consequências maléficas do encerramento da atividade econômica justificam, à luz dos princípios que regem a Lei nº 11.101/2005, a legitimidade das fundações para se utilizar do instituto da recuperação judicial.
Apesar de não terem prevalecido nos julgamentos em questão, os argumentos defendidos pelo Ministro Moura Ribeiro são bastante relevantes e consistentes.
De fato, embora não haja previsão expressa na legislação, o reconhecimento da legitimidade das fundações parece mais alinhado com interpretação sistemática e principiológica da Lei nº 11.101/2005, que se encontra embasada nos princípios da preservação e da função social da empresa.
É fundamental cotejar a interpretação dos artigos 1º e 2º da Lei nº 11.101/2005 com o princípio da preservação da empresa insculpido no seu artigo 47, que considera não a natureza formal da pessoa jurídica, mas a sua função econômica e social enquanto fonte produtora de riquezas:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Daí que deve prevalecer o entendimento de que a feição empresarial da pessoa jurídica não fica adstrita à mera natureza jurídica do agente econômico. A atividade das fundações pode não estar formalmente enquadrada como empresarial, mas trata-se, sem dúvida, de atividade que se adequa à definição do artigo 47 da Lei nº 11.101/2005.
Afinal, o critério da legalidade estrita como fonte única do Direito, como parecia para muitos juristas na vigência do artigo 126 do Código de Processo Civil de 1973 (1) e do artigo 4º da redação original da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, foi ultrapassado pelo disposto no artigo 8º do Código de Processo Civil:
Art. 8º. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Sendo assim, o cerne da questão não está na natureza jurídica do agente econômico, se mercantil ou não, mas no impacto da atividade por ele empreendida, nos aspectos culturais, econômicos e sociais.
Ao se impedir o acesso das fundações ao instituto da recuperação judicial, o risco de essas pessoas jurídicas serem incapazes de superar momentâneo cenário de crise econômica aumenta significativamente. Por consequência, há inegável prejuízo para a sociedade, que não mais poderá usufruir dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade econômica das fundações.
Quanto ao argumento de que haveria violação à segurança jurídica, convém destacar que nunca houve entendimento consolidado quanto à legitimidade das fundações para requerer recuperação judicial, haja vista que não foram expressamente excluídas do rol da Lei nº 11.101/2005. Nesse sentido, é de se esperar que a possibilidade de utilização do instrumento foi ou deveria ter sido considerada por aqueles que optam por manter relações comerciais com essas pessoas jurídicas.
Ressalta-se que os dois acórdãos aqui retratados refletem apenas o entendimento da 3ª Turma do STJ. Nesse cenário, considerando a relevante controvérsia que paira sobre o tema, a ausência de entendimento consolidado no âmbito da 4ª Turma do STJ e os consistentes argumentos que embasam o posicionamento minoritário do Ministro Moura Ribeiro, não se pode dizer que haja entendimento sólido e estável quanto à matéria, especialmente porque os julgados não possuem força vinculante, conforme previsão do artigo 927 do Código de Processo Civil.
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
Fernanda de Figueiredo Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
(1) Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.
(2) Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
(3) Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º , quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.