Procedimentos Especiais de Jurisdição Voluntária no Novo CPC (Parte 6)
Leonardo Wykrota
Organização e fiscalização das fundações (arts. 764 e 765)
As fundações de direito privado são criadas a partir da dotação especial de bens livres de um instituidor para determinando fim (1). São, pois, o resultado da atribuição de personalidade a uma universalidade de bens. A matéria é regulada pelo Código Civil em capítulo próprio (arts. 62 a 69), no qual se determina àqueles a quem o instituidor cometer a aplicação do patrimônio a formulação do estatuto da fundação projetada (se este já não o houver feito) e a posterior submissão do documento à aprovação pela autoridade competente, “com recurso ao juiz” (art. 65, Código Civil).
À legislação processual coube, em última análise, regular a forma de se “recorrer” (em sentido amplo e não em sentido técnico) ao judiciário nos assuntos próprios à organização e fiscalização das fundações (2). A autoridade competente, no caso, é o Ministério Público (3) e a ele cabe integrar a vontade do instituidor para fins de validade do registro do estatuto nos termos da Lei 6.015/1973 (arts. 114 a 121), ou então sugerir alterações no estatuto ou mesmo elaborá-lo, quando for o caso (4).
O Novo Código traz um regramento semelhante ao seu antecessor, embora mais objetivo, considerando as regras já existentes do Código Civil. Simplifica, assim, o texto do diploma anterior, mas mantém a mesma lógica. Nessa trilha, a nova Lei mantém a incumbência de o juiz decidir sobre a aprovação e alterações do estatuto das fundações quando: (a) forem previamente negadas pelo Ministério Público; (b) o interessado não concordar com as modificações exigidas ou com o próprio estatuto elaborado pelo parquet (art. 764, NCPC). Cabe ao magistrado, também, se for o caso, determinar a realização de alterações (com o fim de adaptar o estatuto ao objetivo do instituidor) antes da respectiva aprovação (art. 764, §2º, NCPC).
O Código também reproduz a disposição do art. 69 do Código Civil, no sentido de que qualquer interessado ou o Ministério Público poderá requerer em juízo a extinção da fundação quando se tornar ilícito o seu objeto, for impossível a sua manutenção ou vencer o prazo de sua existência (art. 765, NCPC). A extinção se opera com a sentença proferida em processo próprio, que seguirá as disposições gerais previstas para os procedimentos de jurisdição voluntária, seguida da incorporação do respectivo patrimônio por outra fundação de fins semelhantes ou da destinação dos bens restantes conforme determinação do instituidor, se for o caso (art. 69, Código Civil).
Procedimento de ratificação dos protestos marítimos e dos processos testemunháveis formados a bordo (arts. 766 a 770)
O Novo Código trouxe para o bojo dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária o regramento da ratificação de todos os protestos e processos testemunháveis feitos a bordo, agora sujeitos à apresentação em juízo pelo comandante, nas primeiras vinte e quatro horas de chegada da embarcação no primeiro porto em que atracar (art. 766, NCPC).
O protesto, como já dito no exame das notificações e interpelações, é forma de resguardar direitos e prevenir responsabilidades. Tema, portanto, de especial interesse para o transportador e seu agente marítimo, ainda regido pelo Código Comercial (Lei 556, de 25.06.1850), por sua vez, rico em exemplos de utilização do protesto e procedimentos testemunháveis formados a bordo (5).
O Código Comercial também dispõe que “[t]odos os processos testemunháveis e protestos formados a bordo, tendentes a comprovar sinistros, avarias, ou quaisquer perdas, devem ser ratificados com juramento do capitão perante a autoridade competente do primeiro lugar onde chegar; a qual deverá interrogar o mesmo capitão, oficiais, gente da equipagem (art. 545, n. 7) e passageiros sobre a veracidade dos fatos e suas circunstâncias, tendo presente o Diário da Navegação, se houver sido salvo” (art. 505, Código Comercial).
Tais expedientes são, pois, parte importante do Direito Marítimo, razão pela qual andou bem o legislador em dar-lhe regulação procedimental mais atualizada, considerando que a matéria processual ainda estava sujeita às disposições do vetusto Código de Processo Civil de 1939, em capítulo intitulado “Dos Protestos Formados a Bordo” (arts. 725 a 729), por força do art. 1.218, inc. VIII, do CPC/1973 (6).
A regulação trazida pelo Novo Código é bem semelhante àquela prevista no Código de 39. O procedimento se inicia com a apresentação pelo comandante de petição inicial com a transcrição dos termos a serem ratificados, acompanhada das cópias das páginas em que foram lançados no Livro Diário da Navegação (7), dos documentos de identificação do comandante e das testemunhas arroladas, do rol de tripulantes, do documento de registro da embarcação e, quando for o caso, do manifesto das cargas sinistradas e a qualificação de seus consignatários, traduzidos, quando for o caso, para o português de forma livre (art. 767, NCPC).
Não se tratando de crime cometido a bordo do navio, ou de fato que envolva tratado ou contrato firmado entre a União e Estado estrangeiro, hipóteses essas de competência da Justiça Federal (art. 109 da Constituição Federal), o feito será de competência da Justiça Estadual do primeiro porto em que atracar a embarcação (8).
A Lei processual presume a urgência do expediente e determina a oitiva, sob compromisso, do comandante e de duas a quatro testemunhas (9), no mesmo dia em que apresentada a petição (art. 768, NCPC) (10). Serão apregoados após a abertura da audiência os consignatários das cargas indicados na petição inicial e outros eventuais interessados, os quais terão nomeado a seu favor um curador especial para o ato, quando estiverem ausentes (art. 769, NCPC).
Feita a inquirição do comandante e das testemunhas, a ratificação do protesto ou o processo testemunhável lavrado a bordo ocorrerá na própria audiência, por sentença que prescindirá do relatório, mas deverá expor os motivos que formaram o convencimento do juiz acerca da veracidade dos termos lançados no Diário da Navegação (art. 770, NCPC).
Após a sentença e independentemente do trânsito em julgado, o juiz determinará a entrega dos autos ao autor ou ao seu advogado, mediante a apresentação de traslado (art. 771, NCPC).
Leonardo Wykrota
Sócio responsável pela equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) A Lei Civil somente admite fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (art. 62, parágrafo único, Código Civil).
(2) Conforme ensina Humberto Theodoro Jr., a estrutura legal “(...) não é de recurso contra a decisão do Ministério Público, mas de ação de suprimento, à semelhança do que se passa com a ação de suprimento de consentimento” (THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. III, p. 406).
(3) Cf. art. 66 do Código Civil, funcionando a fundação no Distrito Federal, caberá o encargo ao Ministério Público Federal e, estendendo suas atividades por mais de um Estado, o encargo caberá ao respectivo Ministério Público de cada um deles (art. 66, §§ 1.º e 2.º, Código Civil).
(4) O Código Civil dispõe que se o estatuto não for elaborado no prazo assinado pelo instituidor, ou, não havendo prazo, em cento e oitenta dias, a incumbência caberá ao Ministério Público (art. 65, parágrafo único, Código Civil).
(5) Segundo o Código Comercial: É obrigação do capitão resistir por todos os meios que lhe ditar a sua prudência a toda e qualquer violência que possa intentar-se contra a embarcação, seus pertences e carga; e se for obrigado a fazer entrega de tudo ou de parte, deverá munir-se com os competentes protestos e justificações no mesmo porto, ou no primeiro onde chegar (arts. 504 e 505) (art. 526, Código Comercial). Da mesma forma, por exemplo, “O piloto, quando julgar necessário mudar de rumo, comunicará ao capitão as razões, que assim o exigem; e se este se opuser, desprezando as suas observações, que em tal caso deverá renovar-lhe na presença dos mais oficiais do navio, lançará o seu protesto no Diário da Navegação (art. 504), o qual deverá ser por todos assinado, e obedecerá às ordens do capitão, sobre quem recairá toda a responsabilidade” (art. 539, Código Comercial). Cf., ainda, os arts. 606, 614, 619, 660, 743.
(6) Art. 1.218. Continuam em vigor até serem incorporados nas leis especiais os procedimentos regulados pelo Decreto-lei no 1.608, de 18 de setembro de 1939, concernentes: (...) VIII – aos protestos formados a bordo (arts. 725 a 729); (Incluído pela Lei n.º 6.780, de 12.05.1980.)
(7) Trata-se do terceiro livro próprio para a escrituração regular do navio, no, segundo determinada o Código Comercial: “se assentarão diariamente, enquanto o navio se achar em algum porto, os trabalhos que tiverem lugar a bordo, e os consertos ou reparos do navio. No mesmo livro se assentará também toda a derrota da viagem, notando-se diariamente as observações que os capitães e os pilotos são obrigados a fazer, todas as ocorrências interessantes à navegação, acontecimentos extraordinários que possam ter lugar a bordo, e com especialidade os temporais, e os danos ou avarias que o navio ou a carga possam sofrer, as deliberações que se tomarem por acordo dos oficiais da embarcação, e os competentes protestos” (art. 504, Código Comercial).
(8) Cf. decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência 59.018/PE, com acórdão publicado em 19.10.2006.
(9) As testemunhas deverão comparecer independentemente de intimação (art. 768, NCPC). Até porque o Código Comercial arrola, dentre as obrigações dos oficiais e gente da tripulação, o dever de prestar os depoimentos necessários para ratificação dos processos testemunháveis, e protestos formados a bordo (art. 545, n. 7, Código Comercial).