Tema 91 de IRDR do TJMG: o interesse de agir do consumidor e a exigência de prévia tentativa de solução extrajudicial
Lucas de Oliveira, Sofia Nogueira, Leila Mendes e Tamires Fernandes
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (“TJMG”) julgou, em 8 de outubro de 2024, o mérito do Tema 91 (1) de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (“IRDR”) (2), definindo o entendimento do Tribunal sobre a necessidade de prévio requerimento administrativo para configuração do interesse de agir nas ações consumeristas.
A discussão foi instaurada pela sobrecarga do judiciário em razão da litigância massiva e, muitas vezes, predatória, na tentativa de proporcionar soluções mais ágeis, econômicas e satisfatórias para as partes através de métodos alternativos de resolução de conflitos.
O julgamento coube à 2ª Seção Cível do TJMG que, por unanimidade, acordou em rejeitar as preliminares alegadas e, por divergência, fixar a seguinte tese:
(i) A caracterização do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações e consumo depende da comprovação da prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia. A comprovação pode ocorrer por quaisquer canais oficiais de serviço de atendimento mantidos pelo fornecedor (SAC); pelo PROCON; órgão fiscalizadores como Banco Central; agências reguladoras (ANS, ANVISA; ANATEL, ANEEL, ANAC; ANA; ANM; ANP; ANTAQ; ANTT; ANCINE); plataformas públicas (consumidor.gov) e privadas (Reclame Aqui e outras) de reclamação/solicitação; notificação extrajudicial por carta com Aviso de Recebimento ou via cartorária. Não basta, nos casos de registros realizados perante os Serviços de Atendimento do Cliente (SAC) mantidos pelo fornecedor, a mera indicação pelo consumidor de número de protocolo.
(ii) Com relação ao prazo de resposta do fornecedor à reclamação/pedido administrativo, nas hipóteses em que a reclamação não for registrada em órgãos ou plataformas públicas que já disponham de regramento e prazo próprio, mostra-se razoável a adoção, por analogia, do prazo conferido pela Lei nº. 9.507/1997 (“Habeas Data”), inciso I, do parágrafo único do art. 8º, de decurso de mais de 10 (dez) dias úteis sem decisão/resposta do fornecedor. A partir do referido prazo sem resposta do fornecedor, restará configurado o interesse de agir do consumidor para defender os seus direitos em juízo.
(iii) Nas hipóteses em que o fornecedor responder à reclamação/solicitação, a referida resposta deverá ser carreada aos documentos da petição inicial, juntamente com o pedido administrativo formulado pelo consumidor.
(iv) A exigência da prévia tentativa de solução extrajudicial poderá ser excepcionada nas hipóteses em que o consumidor comprovar risco de perecimento do direito alegado (inclusive na eventualidade de iminente transcurso de prazo prescricional ou decadencial), situação em que o julgador deverá aferir o interesse de agir de forma diferida. Nesses casos, caberá ao consumidor exibir a prova da tentativa de solução extrajudicial em até 30 (trinta) dias úteis da intimação da decisão que analisou o pedido de concessão da tutela de urgência, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.
(v) Nas ações ajuizadas após a publicação das teses fixadas no presente IRDR, nas quais não exista comprovação da prévia tentativa extrajudicial de solução da controvérsia e que não haja pedido expresso e fundamentado sobre a excepcionalidade por risco de perecimento do direito, recebida a inicial e constatada a ausência de interesse de agir, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial de modo a demonstrar, no prazo de 30 dias úteis, o atendimento a uma das referidas exigências. Decorrido o prazo sem cumprimento da diligência, o processo será extinto sem julgamento de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.
(vi) Com relação à modulação dos efeitos da tese ora proposta, por questão de interesse social e segurança jurídica (art. 927, §3º do CPC c/c art. 46 da Recomendação nº 134/ 2022 do CNJ), nas ações ajuizadas antes da publicação das teses fixadas no presente IRDR, o interesse de agir deverá ser analisado casuisticamente pelo magistrado, considerando-se o seguinte:
a) nas hipóteses em que o réu ainda não apresentou contestação, constatada a ausência do interesse de agir, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial (art. 321 do CPC), nos termos do presente IRDR, com o fim de coligir aos autos, no prazo de 30 dias úteis, o requerimento extrajudicial de solução da controvérsia ou fundamentar o pleito de dispensa da prévia comprovação do pedido administrativo, por se tratar de situação em que há risco de perecimento do direito. Quedando-se inerte, o juiz julgará extinto o feito sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.
b) nas hipóteses em que já houver contestação nos autos, tendo sido alegado na peça de defesa fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do autor (art. 373, II, do CPC), restará comprovado o interesse de agir.
O relator do IRDR, Des. José Marcos Rodrigues Vieira, defendeu a tese de que o interesse de agir do consumidor independeria da prévia tentativa de solução por meios autocompositivos e consignou que, conforme o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, a garantia da inafastabilidade da jurisdição em relação a sujeitos vulneráveis colocaria em posição preferencial a via judicial. O relator, ainda, argumentou que embora possa se extrair do Código de Processo Civil (“CPC”) e da Constituição elevado prestígio aos meios extrajudiciais de resolução de conflitos, não haveria escalonamento de procedimentos, de modo que não seria possível extrair a obrigatoriedade da utilização desses métodos.
Prevaleceu, no entanto, a divergência instaurada pela Des. Lílian Maciel, no sentido de que é necessária a comprovação de prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia para a configuração do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações de consumo. Isso, porque o ordenamento jurídico brasileiro consagrou um sistema de justiça multiportas, em que a solução judicial deixa de ter primazia nos litígios em que é possível a autocomposição. Assim, a garantia constitucional de inafastabilidade da jurisdição se refere ao direito de obter solução adequada, tempestiva e efetiva ao conflito, o que não impede a utilização de outros meios de solução de conflitos.
Há, ainda, que se distinguir o direito de ação e o interesse de agir, em que a análise da necessidade de jurisdição é fundamentada na premissa de que a jurisdição é o último meio de solução de conflito. O TJMG firmou o entendimento de que o direito de ação não é absoluto e pode ser limitado, assim como outros direitos fundamentais, de modo que, como condição da ação, o interesse de agir deve ser aferido a partir da possibilidade concreta de o Poder Judiciário solucionar a controvérsia de forma rápida e efetiva. Considerando, ainda, a existência de litigância massiva e predatória no judiciário, seria necessária a demonstração do real conflito material de interesses jurídicos para a aferição qualificada do interesse de agir da parte autora.
No julgamento, ficou definido que as ações ajuizadas antes da publicação da tese fixada no IRDR 91 deverão ter o seu interesse de agir aferido casuisticamente pelo magistrado. Assim, nas ações em que ainda não houver a apresentação de contestação, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial e apresentar, no prazo de 30 dias úteis, o requerimento extrajudicial de solução da controvérsia, sob pena de extinção do feito sem resolução de mérito. Quando já houver contestação nos autos, o juiz admitirá como comprovado o interesse de agir se o réu tiver alegado fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do autor.
O posicionamento do TJMG neste precedente é importante avanço para aliviar a litigiosidade excessiva nas demandas consumeristas e coibir a litigância predatória muito comum nesses casos.
Gostou do tema e se interessou pelo assunto? Mais informações podem ser obtidas junto à equipe do contencioso cível do VLF Advogados.
Lucas de Oliveira
Estagiário da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Sofia Nogueira
Estagiária da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Leila Mendes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Tamires Fernandes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Paradigma 1.0000.22.157099-7/002.
(2) O IRDR tem como finalidade a solução de divergência jurisprudencial estabelecida em determinado Tribunal com relação à questão exclusivamente de direito, repetida em múltiplos processos e que apresente risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, conforme o art. 976 do CPC. O julgamento do mérito do IRDR forma um precedente de observância obrigatória (art. 927, III, do CPC), que deve ser observado por todo o tribunal no julgamento de casos semelhantes.