Como É Gostoso o Meu Francês, filme de Nelson Pereira dos Santos, e Piranesi, livro de Susanna Clarke
Bruno Fontenelle e Katryn Rocha
Como É Gostoso o Meu Francês, filme de Nelson Pereira dos Santos
O filme Como É Gostoso o Meu Francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos, propõe uma releitura do relato Duas Viagens ao Brasil (1557), de Hans Staden, pela perspectiva dos Tupinambás. Baseado em um evento real, o longa narra a captura de um europeu no litoral brasileiro do século XVI e seu convívio forçado com um grupo indígena, culminando em seu sacrifício ritual. Com diálogos inteiramente em tupi e foco na cultura indígena, a obra inverte a narrativa colonial tradicional, dando centralidade aos povos originários.
O livro de Staden é uma das primeiras descrições europeias sobre os povos indígenas brasileiros. Nele, o autor alemão narra sua captura pelos Tupinambás em 1554, quando estes planejavam sacrificá-lo e consumi-lo em um ritual antropofágico. Staden sobreviveu ao alegar ser cristão e não português, o que, segundo ele, teria convencido os indígenas a pouparem sua vida. Seu relato, amplamente lido na Europa, descreve os Tupinambás como exóticos e perigosos, reforçando estereótipos sobre a “selvageria” dos povos indígenas.
No filme, Nelson Pereira dos Santos reconfigura essa história. O personagem europeu capturado é um francês exilado por sua própria sociedade, visto como oportunista pelos indígenas, que o integram temporariamente em sua comunidade. Ele tenta negociar sua liberdade, mas sua condição de estrangeiro e as rivalidades políticas entre europeus e indígenas o mantêm em um ciclo de dependência. A antropofagia, apresentada no livro de Staden como algo monstruoso, é retratada no filme como parte de uma lógica cultural, em que comer o inimigo é incorporar sua força e sabedoria.
Ao ambientar o filme inteiramente do ponto de vista dos Tupinambás, com diálogos em tupi e uma narrativa centrada em seus costumes, o diretor subverte a ideia de que a história do Brasil colonial deve ser contada pelas lentes europeias. A produção não busca exaltar ou condenar os rituais indígenas, mas apresentá-los de forma que o espectador entenda sua função na organização social daquele grupo.
A obra também questiona o papel dos europeus no Brasil colonial, retratando-os como figuras deslocadas e gananciosas. Os interesses comerciais e rivalidades políticas dos colonizadores são contrastados com a clareza dos objetivos dos Tupinambás, que veem no sacrifício do francês uma maneira de manter sua cosmovisão intacta.
Como É Gostoso o Meu Francês é mais do que uma releitura histórica: é uma crítica às narrativas que moldaram a visão do Brasil no exterior. O filme revela o quanto a história escrita pelos vencedores pode ser desafiada quando outros pontos de vista são colocados em cena.
O filme está disponível na plataforma Telecine e no YouTube.
Bruno Fontenelle
Advogado da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Piranesi, livro de Susanna Clarke
Escrito pela inglesa Susanna Clarke e publicado no Brasil pela editora Morro Branco com tradução de Heci Regina Candiani, Piranesi, livro vencedor do Women’s Prize for Fiction, vale muito a pena ser lido sem que o leitor tenha muitas informações prévias sobre a narrativa.
De qualquer modo, Piranesi é como um sonho, lento, estranho e intensamente atmosférico, inacreditavelmente imersivo e envolvente, construído por uma escrita inteligente e densa, mas com descrições muito significativas.
Clarke estabelece a Casa, estátua por estátua, corredor por corredor, salão por salão, a fim de descrever esse labirinto que é o próprio Mundo, no qual o personagem que recebe o mesmo nome do título se encontra ali quase totalmente sozinho, exceto pela presença do Outro.
Esse livro nos convida a pensar e explorar seus temas e significados, ao acompanharmos o personagem Piranesi percorrer metodicamente a Casa, descrevendo cada estátua, tentando quantificar e categorizar o ambiente em que se encontra, e chegando à conclusão de que a busca por conhecimento não dá valor ao Mundo, mas que o Mundo é valioso porque é o Mundo.
Piranesi é um personagem fascinante por todas as maneiras que ele se adapta com alegria e curiosidade ilimitadas à sua “prisão”, assim como oscila entre a solitude e a solidão, porque mesmo que pareça uma pessoa satisfeita, ele deixa entrever em seu processo reflexivo, o anseio por mais contato com o Outro, ou mais contato simplesmente.
O livro gira em torno da nossa relação com a arte e as ferramentas de representação, sejam elas os textos, as ilustrações, entre outras, e como a representação é importante no nosso processo de entendimento de como funciona o mundo, assim como a imaginação é importante para como nos relacionamos com ele e como o compreendemos.
Piranesi é estranho, porém agradável. Com construção de mundo impressionante, personagens envolventes e excelente narrativa, é uma leitura definitivamente única e recomendável.
A Beleza da Casa é imensurável; sua Bondade, infinita (p. 16).
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados