Ações de ressarcimento ao Poder Público são imprescritíveis?
O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento que decidirá o tema em repercussão geral
Rafhael Frattari
O Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Mandado de Segurança n. 660.069, no qual se decidirá se as ações de ressarcimento por dano ao Poder Público decorrente de ilícito civil são imprescritíveis, fixando a correta interpretação do parágrafo 5º, do artigo 37 da Constituição Federal.
Depois de decisões isoladas das Turmas, nas quais o tema não foi enfrentado com a cautela merecida, o caso teve repercussão geral fixada no Mandado de Segurança n. 660.069, de relatoria do Ministro Teori Zavascki, que trata de indenização por dano à veículo do Poder Público causado em acidente de trânsito. Embora em caso prosaico, a repercussão do assunto pode ser vastíssima, pois, para alguns de seus defensores, a imprescritibilidade aplicar-se-ia a qualquer dano cometido contra o Estado.
A controvérsia decorre basicamente da péssima redação do parágrafo 5º, do artigo 37 da Constituição Federal que prevê que: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
Há basicamente três correntes interpretativas sobre o caso:
(i) a imprescritibilidade aludida no dispositivo constitucional alcançaria qualquer tipo de ação de ressarcimento ao erário (imprescritibilidade ampla);
(ii) a imprescritibilidade alcançaria apenas as ações por danos decorrentes de ilícito penal ou de improbidade administrativa (imprescritibilidade excepcional ou moderada);
(iii) o dispositivo não contém norma apta a consagrar imprescritibilidade alguma (ausência de imprescritibilidade).
No julgamento ora iniciado, o Ministro Teori Zavascki decidiu que a interpretação do dispositivo constitucional deve ser restrita, para que não se chegue ao cúmulo de considerarem-se imprescritíveis todas as ações de ressarcimento fundadas em ilícitos civis, dos quais não decorram culpa ou dolo.
Depois de estabelecer a função e a importância da prescrição para a estabilidade das relações jurídicas, o Ministro Relator ponderou que a exceção constitucional da imprescritibilidade deva ser aplicável apenas às ações de dano decorrentes de ilícitos penais ou de improbidade administrativa, negando o provimento ao Recurso Extraordinário da União, propondo seja esta a tese fixada na repercussão geral. A Ministra Rosa Weber seguiu o voto do Ministro relator, o que também fez o Ministro Luís Roberto Barroso.
No entanto, o Ministro Barroso ponderou que a tese fixada deveria ser mais restrita, eis que no Recurso Extraordinário discutiu-se tão somente se o acidente de trânsito poderia dar origem a ações de dano imprescritíveis, nada mais. A divergência do Ministro Barroso não deixa de ser interessante, pois demonstra as dificuldades de fixarem-se teses de repercussão geral, no julgamento no controle difuso de constitucionalidade, que deve ater-se às premissas do caso analisado. De todo modo, após a discussão sobre o alcance da repercussão geral, o Ministro Dias Toffoli requereu vista do processo.
Desta forma, acredita-se que a fixação da repercussão geral no caso será mais controversa do que o próprio mérito da questão. Pelos três primeiros votos, parece provável que a imprescritibilidade irrestrita ou ampla não prevalecerá no Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que vem ocorrendo no STJ.
Acredita-se que a posição até então defendida pelos Ministros do Supremo esteja correta já que a imprescritibilidade deve sempre ser vista como a exceção ao sistema, nunca como a regra, em virtude de sua relevantíssima função de estabilizar as expectativas de comportamento na sociedade. Portanto, nas raras situações em que o legislador optar por ela, a imprescritibilidade deve ser colocada de maneira inequívoca, clara e justificada, como é o caso dos crimes de racismo, por exemplo. Ademais, há três argumentos importantes contra a imprescritibilidade.
O primeiro deles é de ordem sistemática. Ora, há prazos prescricionais para inúmeras cobranças de créditos exigidos pelo Poder Público, como aqueles de origem tributária, as multas aplicadas pelo IBAMA, os créditos decorrentes do pagamento da CFEM, bem como para a aplicação de punição administrativa disciplinar e para a anulação de atos administrativos. É desarmônico à racionalidade sistêmica do Direito Positivo supor que apenas o ressarcimento de dano seja imprescritível, em comparação aos demais créditos exigidos pelo Estado. Por que haveria imprescritibilidade nestes casos se até nas hipóteses de sonegação fiscal há prescrição?
Em face da importância do tema, também a redação do dispositivo haveria de ter sido explícita se realmente tivesse a intenção de proclamar a imprescritibilidade. Especialmente porque em redação anterior (não aprovada) fazia a afirmação pela “imprescritibilidade das ações de ressarcimento”, de modo claro. Como o conteúdo do dispositivo efetivamente aprovado foi outro, é inegável que a intenção do Constituinte não se amolda à tese da imprescritibilidade.
Por fim, a opção por estabelecer pretensões imprescritíveis deve ser analisada com bastante cautela pelo legislador, eis que se trata de impor fardo gravoso ao eventual devedor, que passará toda a vida na expectativa de que o credor volte-se contra ele a qualquer momento. Tal indefinição cheira à pena perpétua, vedada pela ordem jurídica brasileira.
De mais, o maior problema na adoção da imprescritibilidade está em garantir que haverá meios de defesa amplos e suficientes para que eventual réu em ação de ressarcimento consiga defender-se adequadamente, em caso de ser demandado décadas após a ocorrência do evento que lhe é imputado. O tempo a tudo apaga, o sofrimento pela perda de entes queridos, a dor do amor acabado e, sobretudo, documentos, provas, historias e contextos. Por isso, a opção legislativa deve ser sempre pelo estabelecimento de prazos prescritivos para pretensões não exercidas.
Rafhael Frattari
Sócio responsável pela área tributária do VLF Advogados.