Até qual momento é possível corrigir o polo passivo de um processo?
Artur Rufino
O processo nasce quando um indivíduo insatisfeito acredita que seu interesse deve prevalecer e o concorrente deve se submeter a ele, mas esbarra na conduta desse adversário. Assim, o processo consiste em instrumento dotado de várias regras, que tem o objetivo de pacificar as relações pessoais e eliminar os conflitos (1).
O processo, portanto, dispõe de interesse público porque busca solucionar as controvérsias da sociedade e encontrar meios aptos a permitir que a relação processual se desenvolva da maneira mais adequada possível, isto é, possibilitando que o resultado seja obtido de forma rápida, segura e efetiva (2).
Na prática, ao ingressar em juízo cabe ao autor delimitar qual será o objeto litigioso do processo, indicando a sua narrativa dos fatos, contra quem se propõe a ação, os seus fundamentos jurídicos, a causa de pedir e o seu pedido (3). O juiz, por sua vez, é o encarregado de conduzir e impulsionar o processo, segundo as regras definidas. Já o réu será citado para participar do processo e poderá opor-se à pretensão do autor, pleiteando a sua rejeição.
No sistema anterior (art. 264 do CPC/73) dizia-se que sob nenhuma hipótese seria admitida a modificação da causa depois do saneamento do processo (4). No entanto, no CPC/2015 o regime passou a ser outro. Antes da citação do réu, o autor possui amplos poderes para modificar a demanda. De acordo com o art. 329, I do CPC, é possível que a petição inicial seja aditada e o objeto do processo seja aumentado, reduzido, ou até alterado completamente (5).
Também é permitido ao réu promover alterações no processo. Com o oferecimento de contestação, ele poderá alegar a sua ilegitimidade e permitir a correção do polo passivo (art. 338), ou até indicar o verdadeiro sujeito passivo da demanda (art. 339) (6). O réu também tem a possibilidade de aumentar o objeto litigioso do processo com a apresentação de reconvenção (art. 343) e de pedido contraposto em alguns casos específicos (7).
Ocorre que há limite temporal para a alteração do objeto do pedido e da causa de pedir do processo: a decisão de saneamento do art. 357 do CPC. Se a decisão saneadora for proferida e as partes não pedirem esclarecimentos ou interpuserem recursos, ocorrerá a estabilização da decisão e tudo aquilo que foi decidido e esclarecido não poderá mais ser modificado (8). A opção do legislador nesse caso é a de que o processo siga modelo preclusivo, com necessária segurança jurídica durante o curso da marcha processual, evitando retrocessos procedimentais (9). Confira-se o art. 329 do CPC:
Art. 329. O autor poderá:
I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;
II - até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo à reconvenção e à respectiva causa de pedir.
No entanto, há uma questão relevante que não foi tratada de forma específica pelo CPC/2015: seria possível corrigir o polo passivo após a decisão de saneamento?
O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) enfrentou essa questão recentemente no julgamento do Recurso Especial nº 2.128.955/MS e decidiu que é sim possível, desde que não haja alteração da causa de pedir e do pedido.
O caso específico se trata de Ação de Execução de Título Extrajudicial ajuizada por associação de moradores de loteamento contra um comprador de um dos seus lotes, em razão do não pagamento de taxas associativas.
A exequente, então, pediu a penhora do imóvel que originou o débito, razão pela qual as vendedoras do bem ao executado foram intimadas e afirmaram que, na realidade, elas que eram as verdadeiras proprietárias do imóvel porque o executado havia deixado de cumprir as obrigações do contrato de compra e venda firmado entre as partes. Entretanto, defenderam que o débito das taxas associativas seria de natureza pessoal e, por isso, deveria recair somente contra o executado.
Posteriormente, a exequente alegou que as vendedoras teriam confessado que o imóvel gerador do débito é de sua propriedade, motivo pelo qual deveriam ser incluídas no polo passivo da execução. O juiz de primeira instância deferiu o pedido de alteração do polo passivo. Porém, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul reformou a decisão de primeira instância com o fundamento de que “a alteração do polo passivo da Ação de Execução por Título Executivo Extrajudicial ocorreu muito após a citação do Executado – e sem concordância dele”.
O STJ, contudo, entendeu de forma diversa. Para o Tribunal Superior, a alteração do polo passivo seria possível nos casos em que não houver alteração do objeto do processo (causa de pedir e pedido) porque esse entendimento não violaria o disposto no art. 329 do CPC e estaria em conformidade com os princípios da economia processual e da primazia do julgamento do mérito, na medida em que o processo é utilizado como instrumento para a célere composição do litígio, e não como fim em si mesmo.
Para o STJ, impedir a alteração do polo passivo quando não houver alteração do objeto do processo significaria simples adiamento do julgamento do mérito, pois as ações conexas devem ser julgadas conjuntamente. Além disso, reforçou que o retardamento da resolução do conflito não dispensaria o dever de elaboração de defesa, o que traria ainda mais prejuízos para as partes.
Entendeu-se, assim, que a decisão de saneamento é o limite apenas para a alteração do objeto do processo, sendo absolutamente possível a correção do polo passivo (desde que mantida a causa de pedir e pedido) sem que isso implique violação ao art. 329 do CPC.
Para mais informações, procure a equipe de contencioso cível do VLF Advogados.
Artur Rufino
Advogados da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 190-191.
(2) BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 34.
(3) MAIA, Renata Christiana Vieira. Da petição inicial e da resposta do réu: principais inovações e modificações. In: JAYME, Fernando Gonzaga; GONÇALVES, Gláucio Maciel; FARIA, Juliana Cordeiro de; FRANCO, Marcelo Veiga; ARAÚJO, Marcela de Carvalho; CREMASCO, Suzana Santi. Processo Civil Brasileiro: novos rumos a partir do CPC/2015. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. p. 105.
(4) Art. 264. Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei.
(5) Art. 329. O autor poderá: I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu.
(6) Art. 338. Alegando o réu, na contestação, ser parte ilegítima ou não ser o responsável pelo prejuízo invocado, o juiz facultará ao autor, em 15 (quinze) dias, a alteração da petição inicial para substituição do réu; Art. 339. Quando alegar sua ilegitimidade, incumbe ao réu indicar o sujeito passivo da relação jurídica discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de arcar com as despesas processuais e de indenizar o autor pelos prejuízos decorrentes da falta de indicação.
(7) Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa; Art. 556. É lícito ao réu, na contestação, alegando que foi o ofendido em sua posse, demandar a proteção possessória e a indenização pelos prejuízos resultantes da turbação ou do esbulho cometido pelo autor.
(8) CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. p. 419.
(9) CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.p. 1018-1019, 1031.