Os Sertões, livro de Euclides da Cunha, e Fargo, filme dos Irmãos Coen
Bruno Fontenelle e Anna Julia Silva Costa
Os Sertões, livro de Euclides da Cunha
Publicado em 1902, Os Sertões, de Euclides da Cunha, é uma obra literária e histórica que mergulha na complexidade da Guerra de Canudos, o maior conflito civil da história do Brasil. Escrita a partir da experiência do autor como jornalista acompanhando a quarta expedição militar enviada a Canudos, no sertão da Bahia, a obra vai além do relato factual para se tornar uma reflexão sobre as contradições do país no início da República.
A narrativa é dividida em três partes: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”. Em “A Terra”, Euclides descreve a geografia e o clima hostis do sertão nordestino, elementos que ele acredita exercerem influência determinante sobre a vida dos habitantes. “O Homem” busca compreender os sertanejos a partir de teorias científicas da época, como o darwinismo social e determinismo racial e ambiental. Embora suas análises estejam enviesadas de preconceitos, a parte humana da obra evidencia as condições de exclusão e abandono a que essas populações estavam submetidas. Por fim, “A Luta” narra a resistência de Canudos contra o Exército Republicano, as três expedições fracassadas e o massacre que resultou na destruição da comunidade liderada por Antônio Conselheiro, na quarta e última expedição.
No núcleo da Guerra de Canudos está o choque de duas visões de Brasil. De um lado, o Brasil republicano, inspirado por ideais europeus, positivistas e urbanos, que enxergava a modernidade como um processo linear e uniforme. Do outro, o Brasil dos sertões: miscigenado, ligado à fé popular e à tradição oral, vivendo de forma que escapava às definições racionais e estruturadas do Brasil urbano. Euclides da Cunha retrata esse embate como mais do que uma luta territorial ou militar, mas como um conflito cultural e simbólico entre dois modelos de nação.
Inicialmente defensor da República, Euclides muda de perspectiva ao perceber a violência desmedida e a desumanização do povo sertanejo. Ele evidencia o autoritarismo e a falta de entendimento do governo central em relação às realidades do interior do país, revelando o abismo entre as capitais e as populações mais isoladas.
O estilo de Euclides é marcado por uma linguagem de certa forma complexa, com imagens e descrições detalhadas, intercalando ciência, literatura e filosofia. Essa combinação dá ao livro um tom analítico, mas que também critica as narrativas oficiais da República e evidencia as contradições do projeto de modernização.
Embora Os Sertões seja fruto de seu tempo, trazendo conceitos ultrapassados e muitas vezes reducionistas, sua relevância permanece. A obra é um testemunho das disputas sobre a identidade brasileira, ponto de contradição que existe até os dias de hoje. Desse modo, a Guerra de Canudos não foi apenas um massacre militar, mas um confronto entre formas de existir e compreender o país: o Brasil que sonhava com a modernidade europeia e o Brasil que carregava suas raízes mestiças, religiosas e mais plurais.
Em Os Sertões, Euclides da Cunha nos convida a encarar essa dualidade. Mais do que uma crônica de guerra, o livro aborda uma reflexão sobre o Brasil que somos e o Brasil que gostaríamos de ser.
Bruno Fontenelle
Advogado da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Fargo, filme dos Irmãos Coen
Um crime acontece no interior do estado de Minnesota, EUA, no ponto mais alto do inverno estadunidense. Na paisagem isolada, soterrada em neve, esse crime se desdobra em outro, e mais outro, e, em um período de poucos dias, acompanhamos a chefe de polícia da pequena cidade se embrenhar no que parece uma sequência de atos cuidadosamente planejados… para dar errado.
Fargo – Uma Comédia de Erros é inspirado em uma história real e possui todos os elementos necessários para ser um verdadeiro conto de terror. No entanto, os Irmãos Coen dirigem e escrevem a obra com seus característicos personagens excêntricos, situações absurdas e diálogos sutilmente hilários, tornando o filme uma tragicomédia perfeita.
Um relato sobre o caos que surge a partir de mentiras mal contadas e pessoas mal planejadas poderia facilmente se perder em confusão. Porém, a combinação de um roteiro cuidadoso e de atuações impecáveis fazem com que o filme seja tão descomplicado quanto é caótico. Não à toa, Fargo foi o vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original em 1997, e responsável por conceder o prêmio de Melhor Atriz à Frances McDormand.
O impacto cultural do filme foi, e se mantém, tão grande, que, quase vinte anos depois do seu lançamento, inspirou a criação de uma série de televisão homônima, disponível na Netflix.
Fargo combina cuidadosamente humor e inteligência, tensão e alívio cômico, e fica impossível não se envolver na trama, mesmo que nunca seja possível prever qual absurdo será o próximo.
Anna Julia Silva Costa
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados