Impacto da Medida Provisória 656/14 na jurisprudência
sobre fraude à execução
Leonardo Wykrota
Recentemente, o Planalto editou a Medida Provisória n. 656/2014 (“MP”), que trata dos mais diversos assuntos, dentre eles: a alteração de alíquotas de PIS/PASEP e COFINS, a prorrogação de benefícios fiscais, o desconto em folha de empréstimos feitos a empregados do regime celetista e a regulamentação da Letra Imobiliária Garantida (LIG). A íntegra da MP pode ser conferida aqui, porém, interessa-nos especificamente a regulação desse último assunto (LIG), pelo impacto direto sobre o tema da fraude de execução.
Ao criar um novo título de crédito com as características da LIG (nominativo, transferível e de livre negociação, garantido por Carteira de Ativos submetida a regime fiduciário próprio, cf. art. 18), a MP precisava ingressar no terreno espinhoso da fraude à execução. Mas, para se compreender melhor essa afirmativa, é necessária uma breve digressão.
No regime originalmente previsto para a fraude à execução, o legislador optou pela presunção da má-fé do terceiro adquirente, como revela o art. 593, do CPC. Ali está claro que será reconhecida a fraude na alienação de bens: (a) contra os quais esteja pendente ação fundada em direito real; ou (b) capaz de reduzir o devedor à insolvência, considerada a pendência de ação judicial em que haja cobrança de valores. Concebido dessa maneira, o regime da fraude de execução se difere, substancialmente, portanto, da “fraude contra credores”, no qual se exige a prova do conluio. Também se diferem os regimes pela necessidade ou não de ação própria para que a fraude seja declarada. No primeiro caso, basta a decisão no bojo do processo original pendente contra o devedor-alienante, para que a venda do bem seja declarada ineficaz em relação ao credor prejudicado. Já na fraude contra credores, é necessária ação própria (a conhecida “ação pauliana”), para que se declare a ineficácia por sentença.
Para um exame objetivo e acurado do tema, sugerimos as obras Fraude no Processo Civil, do genial professor da PUC-MINAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias; e Fraude Contra Credores, do incomparável jurista mineiro e professor da UFMG, Humberto Theodoro Jr. Por ora, contudo, interessa ressaltar que o legislador optou por transferir ao comprador o risco de se averiguar a segurança do negócio, na medida em que ele deveria se certificar a respeito da existência de alguma demanda que pudesse interferir na situação econômica do devedor. Nessa perspectiva, a fraude à execução se consagra como mecanismo muito mais eficaz do ponto de vista do credor prejudicado e, também, uma política melhor de repressão à fraude.
Todavia, essa dinâmica implicava, não raro, em situações nas quais um terceiro, ainda que de boa-fé, poderia ser surpreendido por uma declaração de ineficácia havida em processo do qual não tinha conhecimento. E isso poderia acontecer mesmo que o terceiro adquirente tivesse tomado as cautelas esperadas de um comprador cuidadoso. Basta pensar, para tanto, que o referido art. 595 não exige o ato registral para o reconhecimento da fraude à execução. Dessa sorte, ainda que o comprador verificasse o registro do imóvel e pedisse todas as certidões relativas ao foro do imóvel e do domicílio do vendedor, ainda assim poderia haver demanda instaurada em local diverso desses que pudesse, eventualmente, dar lugar a aplicação do art. 595 em seu bojo.
Certamente esse tipo de insegurança impacta na lógica do mercado imobiliário e da própria sociedade. Em inúmeros casos, o terceiro adquirente estava de boa-fé, mas não tinha meios de elidir a fraude contra si presumida nos termos da lei processual originalmente concebida. Imagine-se, por exemplo, as hipóteses dos adquirentes de imóveis negociados por construtoras que, embora não apresentassem restrição judicial no foro da situação do bem, tinham atuação nacional e acabaram devedoras do Fisco de outros Estados. Em casos tais, os adquirentes poderiam ver em xeque a economia de uma vida inteira, pela simples declaração de fraude em favor do Fisco, nas ações movidas em outros Estados sobre as quais o adquirente sequer tinha conhecimento.
Possivelmente por conta de situações como esta, o Superior Tribunal de Justiça, paulatinamente, começou a tratar a discussão sobre a fraude à execução na alienação de imóveis de modo semelhante à fraude contra credores, no que toca à má-fé do adquirente. Exigia, assim, que houvesse o registro da penhora ou a prova de que o terceiro sabia da existência da ação movida contra o alienante para o reconhecimento da fraude (STJ, 4ª Turma, REsp 4.132/RS, de 2.10.90).
Tempos depois, esse entendimento deu origem à Súmula 375/STJ, com o seguinte enunciado: “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Ocorre que, mesmo após a edição da Súmula, o próprio STJ vinha mitigando sua jurisprudência em casos específicos. Nesse sentido, afastou a aplicação do entendimento sumulado em execução fiscal de crédito de natureza tributária, considerando que o art. 185 do CTN, seja em sua redação original seja na redação dada pela LC n. 118/2005, presume a ocorrência de fraude à execução quando, no primeiro caso, a alienação se dá após a citação do devedor na execução fiscal e, no segundo caso (após a LC n. 118/2005), quando a alienação é posterior à inscrição do débito tributário em dívida ativa (REsp 1.141.990-PR [Repetitivo], DJe 19/11/2010 e REsp 1.341.624-SC, julgado em 6/11/2012, cf. Informativo STJ n. 494). Também o fez para reconhecer a fraude na doação de bens a filhos menores, ainda que não tenha havido o registro do gravame, reduzindo os devedores (os pais) à insolvência (REsp 1.163.114-MG, julgado em 16/6/2011, cf. Informativo STJ n. 477.
Agora, provavelmente no intuito de evitar sobressaltos na implementação da LIG, a nova MP sedimenta a aplicação da Súmula n. 375/STJ, a qual sujeita o reconhecimento da fraude de execução ao prévio registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente, em qualquer situação:
Art. 10. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: (Vigência)
I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil;
III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e,
IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. (MP 656 de 2014)
Como se vê a nova MP inverte a lógica jurídico-econômica originária de proteção ao credor-prejudicado e de repressão à fraude (já mitigada pela jurisprudência). Desse modo, tem-se um incremento da segurança nas negociações imobiliárias, presumindo-se a boa-fé do adquirente de imóvel que não continha registro da existência de ações contra o alienante. Resta saber qual será o tratamento jurisprudencial dado aos novos dispositivos (serão mantidas as exceções à aplicação da Súm. 375?) e se a MP será convertida em Lei pelo Congresso. Aguardemos...
Leonardo Wykrota
Sócio responsável pelo contencioso cível do VLF Advogados.