A aplicação da taxa Selic para juros moratórios anteriores à Lei nº 14.905/2024
Osvaldo Tolentino, Yuri Luna Dias, Lucas Auer e Gabrielle Aleluia
Em sua antiga redação, o art. 406 do Código Civil dispunha que os juros moratórios legais deveriam ser estipulados “segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. No entanto, ao não delimitar qual seria essa taxa, a questão sobre o índice adequado para a correção das dívidas cíveis era objeto de intenso debate, com defensores da aplicação da taxa Selic, de um lado, e do fator de 1% ao mês, de outro.
Visando solucionar a controvérsia, foi editada, em 28 de julho de 2024, a Lei nº 14.905, que, dentre outras modificações, alterou o art. 406 do Código Civil, introduzindo o seu parágrafo primeiro, que estabelece expressamente que “a taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código” (1). Assim, encerrou-se a controvérsia sobre qual seria o índice aplicável.
Com isso, entretanto, originou-se nova discussão: as alterações promovidas pela Lei nº 14.905/2024 se aplicam à execução de decisões judiciais transitadas em julgado que estabeleceram critérios distintos? O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) tem entendido que não.
Em 20 de fevereiro de 2025, foi publicado acórdão (2) que julgou o agravo interno no agravo em recurso especial nº 2.059.743/RJ, de relatoria do Ministro Antonio Carlos Ferreira, no qual o colegiado da Quarta Turma do STJ expressou interessante entendimento sobre a aplicação da Lei nº 14.905/2024 em cumprimento de sentença, cujas obrigações exequendas são anteriores à mencionada lei, que alterou a forma de cálculo de juros e correção monetária em processos judiciais cíveis.
Naquele caso, o acórdão anterior, que havia homologado a perícia contábil produzida nos autos, consignou que a quantia devida pela ré deveria “sofrer os acréscimos legais estabelecidos no título judicial”, sendo necessária a correção monetária do montante desde o trânsito em julgado da sentença e a aplicação de juros a partir da citação.
Na análise da questão, o Ministro relator ressaltou o fato de que a aplicação da taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (“Selic”) na atualização de dívidas cíveis engloba, necessariamente, a correção monetária e os juros de mora. Dessa maneira, tendo-se termos iniciais distintos para um e outro acréscimo, é necessário que se faça a decomposição da Selic por meio da subtração do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (“IPCA”), sob pena de enriquecimento sem causa do credor exequente.
No caso julgado pelo STJ, o título executivo apenas determinava genericamente a incidência de “acréscimos legais” o que foi entendido, portanto, como hipótese de incidência da regra geral da Lei nº 14.905/2024.
Ocorre que, ao determinar a incidência da nova regra ao caso, o acórdão do STJ também entendeu que ela deveria ser aplicada sobre as obrigações exequendas que foram constituídas antes da promulgação da nova lei, ou seja, a taxa Selic deveria ser utilizada para a atualização de dívidas anteriores e posteriores à entrada em vigor da Lei nº 14.905/2024.
A princípio, essa interpretação estaria em desacordo com a noticiada no artigo “A nova regra de juros moratórios e o conflito de leis no tempo”, publicado no Informativo VLF - 121/2024 (3), em que foi analisado o impacto da Lei nº 14.905/2024 em débitos existentes antes de 31 de agosto de 2024, data em que a referida lei passou a viger.
Naquele artigo, publicado pouco depois da nova lei, esclareceu-se que o STJ havia reiterado o entendimento de que as regras legais sobre juros moratórios, por serem de direito material, não poderiam retroagir, mas serem aplicadas apenas aos juros que se tornassem exigíveis após a entrada em vigor da nova legislação, seguindo o brocardo tempus regit actum. Isso se deu por ocasião do julgamento do REsp nº 594.486/MG, em maio de 2005, e na fixação do Tema Repetitivo nº 176, em setembro de 2019.
A nova decisão do STJ sobre o tema, contudo, parece divergir dessa lógica, ao estabelecer que os juros moratórios legais devem ter como parâmetro a taxa Selic, mesmo em relação às obrigações anteriores à vigência da Lei nº 14.905/2024.
É necessário observar, porém, que no acórdão de fevereiro deste ano a questão colocada em julgamento não é especificamente a definição de qual é a taxa de juros aplicável a obrigações de trato sucessivo, como nos precedentes mencionados no artigo do Informativo VLF - 121/2024. Embora o Tribunal tenha feito incidir a Selic no caso, o cerne da discussão estava na determinação de que, quando houver termos iniciais distintos para correção monetária e juros de mora, deve-se: (i) aplicar o IPCA no período em que se dá apenas a correção, (ii) aplicar a taxa Selic no período em que houver correção e juros e (iii) aplicar a taxa Selic subtraída do IPCA, quando houver somente incidência de juros.
Segundo os Ministros da Quarta Turma do STJ, o emprego dessa lógica não significa retroatividade da Lei nº 14.905/2024, mas simples coerência com o que já vinha sendo afirmado pelo tribunal nessa matéria: a impossibilidade de cumulação da taxa Selic com outros critérios de atualização monetária. Ainda, conforme o acórdão, a nova lei teria um “caráter declaratório de suas disposições”, pois positivou a interpretação que já era conferida pelo STJ a essa discussão. Dessa maneira, a questão julgada seria dirimida “com base nos mesmos parâmetros interpretativos, ainda que não houvesse edição do novo diploma legislativo”.
Trata-se, portanto, de mais um capítulo no debate sobre as taxas legais de juros e correção monetária no Brasil, que exige cuidadosa análise no caso concreto. Para isso, a equipe do VLF Advogados está pronta para esclarecer quaisquer dúvidas sobre o tema.
Osvaldo Tolentino
Trainee da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Yuri Luna Dias
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Lucas Auer
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gabrielle Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 406. Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal. (Redação dada pela Lei nº 14.905, de 2024)
§ 1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código. (Incluído pela Lei nº 14.905, de 2024)
§ 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil. (Incluído pela Lei nº 14.905, de 2024)
§ 3º Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência. (Incluído pela Lei nº 14.905, de 2024)
(2) AgInt no AREsp n. 2.059.743/RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 11/2/2025, DJe de 20/2/2025.
(3) DIAS, Yuri Luna. A nova regra de juros moratórios e o conflito de leis no tempo. Informativo VLF - 121/2024, de 29 de outubro de 2024. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2951. Acesso em: 27 mar. 2025.