Considerações sobre a tutela do capital intelectual nas sociedades empresárias
Letícia Camargos Ferraz e Fernanda Marra Vidigal
Imagine o engenheiro “A”, que atua há anos no setor de tecnologia e adquiriu as habilidades e os conhecimentos necessários para a operação de determinado produto. Ele deseja abrir uma empresa de consultoria especializada para ensinar outras sociedades do ramo a utilizar o referido produto de forma mais eficiente, voltada para o aumento de produtividade. Falta-lhe, porém, o capital pecuniário necessário para dar início ao negócio. De outro lado está “B”, fundo de investimentos interessado na ideia e disposto a aportar os recursos financeiros para viabilizar o empreendimento. Assim, “A” e “B” decidem conjugar seus interesses e constituir a startup “C”, combinando o know-how de um com o aporte do outro.
Surgem, então, as dúvidas: como estruturar juridicamente essa parceria? Como proteger a contribuição técnica de “A”, que não se traduz em dinheiro ou bens físicos, e, ao mesmo tempo, garantir que “B” tenha retorno por seus investimentos?
Esse cenário é comum em sociedades empresárias que nascem da união de interesses de agentes econômicos com perfis complementares – um com conhecimento técnico, outro com capital financeiro.
Para responder essas perguntas, o primeiro passo é compreender de que forma as diferentes contribuições de cada sócio passarão a integrar a startup “C” através de seu capital social. Para constituição de qualquer sociedade empresária, é necessário fixar o valor do capital social, compreendido como a somatória das contribuições assumidas pelos sócios para a formação do patrimônio mínimo que a sociedade precisa para exercer suas atividades de forma lucrativa (1). Essas contribuições podem ser feitas em dinheiro ou em qualquer espécie de bens, corpóreos ou incorpóreos, desde que suscetíveis de avaliação pecuniária, conforme artigo 997 da Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”) (2) e artigo 7º da Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) (3).
Em contrapartida, os sócios recebem quotas ou ações proporcionais às suas contribuições, que determinam seus direitos políticos e patrimoniais na sociedade (4). Em outras palavras, o sócio que contribui mais para o capital social, em regra, é o que possui maior poder de decisão.
No exemplo do engenheiro “A”, a dificuldade está justamente em mensurar sua contribuição ao capital social de “C”. Enquanto o investidor “B” aporta recursos monetários claramente quantificáveis, o engenheiro “A” oferece seu capital intelectual, ativo intangível e de difícil mensuração (5). Assim, para definir adequadamente o percentual de participação de cada sócio na startup “C”, é preciso avaliar quanto vale o conhecimento técnico do sócio “A”.
O capital intelectual pode se manifestar de duas formas: como propriedade intelectual, juridicamente protegida, ou como conjunto de conhecimentos, expertises técnicas, habilidades pessoais e experiências que não se traduzem em bens juridicamente apropriáveis.
Na primeira hipótese, o conhecimento do sócio “A” seria passível de quantificação à medida que é expresso por uma forma de suporte juridicamente protegida por direitos autorais ou pelo regime da propriedade intelectual. Por exemplo, “A” pode ser autor ou possuir licença de uso de programa de computador (6), ou ter criado curso audiovisual inédito e autoral ensinando a usar o produto (7), ou ser titular de patente que exprima a sua invenção na metodologia de utilização desse produto (8). Em todos esses casos, é possível avaliar esses bens por métodos contábeis. Desse modo, “A” pode integralizar os direitos patrimoniais ou o registro desses ativos no capital social da sociedade pelo valor de sua avaliação econômica.
Por outro lado, caso o know-how de “A” seja composto exclusivamente por habilidades pessoais, conhecimentos não registráveis e não passíveis de apropriação exclusiva, sua valoração torna-se inviável. Assim, sendo bem imaterial, intransferível e insuscetível de avaliação pecuniária, o conhecimento de “A” não poderia ser integralizado no capital social da startup “C”.
Partindo dessa segunda hipótese, portanto, como é possível garantir que “A” ingresse na startup “C” e tenha efetivamente o poder de gestão dos negócios sociais, ainda que “B” tenha aportado mais recursos economicamente relevantes?
A boa notícia é que o ordenamento jurídico oferece ferramentas para estruturar a operação de “C”, de modo a equalizar os interesses de “A” e “B”, garantindo a “A” o poder de gestão e, a “B”, o retorno financeiro pretendido em decorrência de seus investimentos.
Sem esgotar o tema, destacamos a seguir alternativas comumente empregadas em situações desse tipo:
(A) Ações com direitos diferenciados em sociedades anônimas
Criação de sociedade anônima com espécies e classes de ações diferentes, que concedam aos titulares direitos diferentes dentro da companhia, de modo que “A” mantenha o poder de controle e gestão de “C”, enquanto “B” tenha prioridade no recebimento dos lucros e dividendos.
(B) Investimento-anjo em sociedade limitada
Criação de sociedade limitada controlada apenas por “A” e realização do aporte de “B” pela modalidade de investimento-anjo, de forma que “B” não participe do capital e da estrutura societária de “C”, mas faça jus ao recebimento de remuneração decorrente dos lucros e, no futuro, possa converter o aporte em participação societária.
(C) Sociedade em conta de participação
Criação de sociedade em conta de participação, por meio da qual “A” atua como sócio ostensivo, responsável pessoalmente pelas obrigações e pela gerência do negócio, e “B” figura como sócio participante, responsável apenas pelo aporte de capital e com direito, no futuro, aos lucros provenientes de “C”.
(D) Mútuo conversível em quotas ou ações
Celebração de mútuo conversível em quotas ou ações entre “B” e “C”, garantindo que “B” aporte os recursos necessários em “C”, que permanecerá sob o controle e gestão de “A”, e posteriormente possa converter o investimento em participação societária.
(E) Acordo de sócios com regras específicas de governança
Pactuação de acordo de sócios com regras sobre direito de voto, de modo que as partes, em comum acordo, decidam as matérias que podem ser vetadas ou aprovadas por “A”, ainda que “A” seja sócio minoritário.
(F) Contratos ou cláusulas de opção de compra com meta de performance
As partes podem estabelecer metas de crescimento ou desempenho que, uma vez atingidas, acionam transferências de participação entre “A” e “B”, equilibrando sua representatividade societária.
Não há fórmula única. A estrutura ideal depende de diversos fatores: peculiaridades do caso concreto, ramo das atividades desenvolvidas, horizonte de tempo do investimento, intenções e preferências das partes, tributação incidente sobre a operação, aptidão ao risco de “A” e “B”, entre outros.
É necessário ir além da simples divisão do capital social com base nos aportes financeiros. A estrutura deve refletir a relevância do capital intelectual como ativo estratégico do negócio e tutelar juridicamente sua preservação. A partir de um arranjo contratual cuidadoso – seja pela integralização de ativos intangíveis, seja pela fixação de direitos específicos ou pela vinculação de obrigações por acordos paralelos – é possível garantir segurança jurídica aos sócios e equilíbrio entre capital financeiro e intelectual.
Na era da inovação e da economia digital, não basta ter dinheiro. O conhecimento técnico tornou-se um dos principais insumos da produção econômica, essencial à criação de novos negócios e à inserção competitiva no mercado globalizado (9). Mesmo com recursos financeiros disponíveis, sem a “ideia de um milhão”, os aportes isoladamente não se convertem em atividade empresarial lucrativa.
Por isso, é fundamental reconhecer juridicamente o valor do capital intelectual e garantir que os sócios fundadores – muitas vezes detentores apenas do conhecimento – sejam remunerados e tenham influência nas decisões da sociedade. Em última análise, essa é a chave para parcerias bem-sucedidas.
Para mais informações sobre o assunto, consulte a equipe de consultoria societária do VLF Advogados.
Letícia Camargos Ferraz
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Fernanda Marra Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Conforme explica Alfredo de Assis Gonçalves Neto, “o capital social estampa em dinheiro o valor do patrimônio que ingressou ou que deve ingressar na sociedade em razão da contribuição dos sócios. Ou seja, capital social é a expressão numérica em moeda do valor do patrimônio que os sócios fornecem para a sociedade, reputado necessário ou adequado para a consecução dos fins sociais” (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 162).
(2) Código Civil, artigo 997. “A sociedade constitui-se mediante contrato por escrito, particular ou público que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: (...) III – capital social da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária”.
(3) Lei das S.A., artigo 7º. “O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro”.
(4) Conforme cita Alfredo de Assis Gonçalves Neto, os direitos pessoais são os de deliberar, de fiscalizar, de votar e ser votado, de retirar-se da sociedade e de geri-la, enquanto os direitos patrimoniais são os de receber dividendos e de participar do acervo social em caso de dissolução ou de exclusão (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 162).
(5) Conforme o Pronunciamento Técnico nº 4 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC”), ativo monetário é aquele representado por dinheiro ou por direitos a serem recebidos em quantia fixa ou determinável em dinheiro, e ativo intangível é um ativo não monetário identificado sem substância física e contemplam conhecimento técnico ou científico, projeto e implantação de novos processos ou sistemas, licenças, propriedade intelectual, imagem, marcas registradas, softwares, patentes, direitos autorais, dentre outros.
(6) Nessa hipótese, a proteção à propriedade intelectual estaria contemplada pela Lei nº 9.609/1998, que assegura direitos autorais ao autor dos programas de computador.
(7) As criações intelectuais são protegidas por direitos autorais, nos termos da Lei nº 9.610/1998.
(8) Aos autores de invenção ou modelo de utilidade é assegurado o direito de obter a patente, que é protegida pela Lei nº 9.279/1996.
(9) SANTOS, Ana Cláudia Karam Abdallah. A Tutela Jurídica do “Capital Intelectual” das sociedades empresárias. São Paulo: Biblioteca de Teses e Dissertações da USP, 2011. p. 4.