A Redoma de Vidro, semi-autobiografia de Sylvia Plath, e Homem com H, filme de Esmir Filho
Letícia Camargos e Katryn Rocha
A Redoma de Vidro, semi-autobiografia de Sylvia Plath
No meio da trama envolvente deste livro, a protagonista Esther Greenwood foi parar em um instituto psiquiátrico e nos levou junto com ela. Essa constatação não é um spoiler: Esther é o alter ego da própria autora Sylvia Plath, conhecida tanto por seus poemas marcantes quanto por sua mente acometida por doenças psiquiátricas. Em A Redoma de Vidro, Sylvia Plath mistura, em doses sublimes, realidade e ficção e confessa ao leitor detalhes de um dos períodos mais vulneráveis de sua vida.
Em seu único romance publicado, Plath reflete sobre o verão de 1952, no qual morou na cidade de Nova York durante um período da faculdade, e sobre os eventos que culminaram na grave crise psicológica que a levou a tentativas de suicídio, internações psiquiátricas e terapias de eletrochoque. Os fatos são narrados na voz de Esther, que inicialmente passa a nos contar sobre o glamour de seus dias trabalhando em uma revista feminina de renome em Nova York. Após algumas páginas, Esther é capturada pela ‘redoma de vidro’ e o leitor é surpreendido com grande e repentina reviravolta no estado mental da protagonista, que passa o resto do livro lutando contra seus problemas psiquiátricos e nos confidenciando as fragilidades de sua mente nesse período de insanidade. Esther rapidamente consegue envolver o leitor com sua narrativa, ora melancólica e ora sutil, ora delicada e ora brutal e, assim, quando é internada em um sanatório, até o mais são dos leitores começa a se sentir tão impotente quanto ela.
O título da obra é um encaixe perfeito: Sylvia compara a depressão com uma redoma de vidro. A pessoa acometida pela depressão se sente isolada em outra dimensão, muito parecida com o mundo real, porém distorcida, sufocante e insuportável. Quem está dentro da redoma até consegue enxergar o mundo exterior, sabe que ele existe, mas não consegue tocá-lo. E o pior: sente que não consegue sair.
A obra de Plath parece tanto um diário quanto um manual sobre isso. Esther, que nos apresenta inicialmente com sua versão jovem, cheia de personalidade, preferências, sonhos, ambições e talentos, rapidamente nos revela outra versão de si, melancólica e deprimida. Quando a segunda versão assume o controle, Esther não possui forças nem mesmo para fazer as atividades que gosta, retroalimentando um ciclo vicioso de autodestruição. Durante esse período crítico, Esther/Sylvia tem um bloqueio criativo e não consegue mais escrever, o que acentua ainda mais o desapreço da protagonista pela própria vida e simboliza a relação íntima e indissociável de Plath com a arte da escrita. Após páginas de angústia e autorreflexão, o livro nos presenteia com um final tolerável para Esther – que, à essa altura da jornada, parece bom o suficiente para o leitor atormentado. Infelizmente, no entanto, Sylvia conseguiu salvar seu alter ego Esther, mas não conseguiu salvar a si própria na vida real. A redoma de vidro desceu novamente sobre Plath, que faleceu semanas após a publicação de seu magnum opus.
Lançado em 1963, o romance também traz como pano de fundo aspectos da condição das mulheres nesse período histórico patriarcal. Esther constantemente desabafa sobre a pressão social que sofre para se tornar esposa e mãe tradicional. Contudo, o ideal de mulher doméstica e tradicional é internamente conflitado com as ambições de Esther de “ditar suas próprias cartas”. Nas palavras de Esther, “todas as mulheres mais velhas querem me ensinar alguma coisa, mas comecei a achar que não tinha nada a aprender com elas”, traçando referência aos paradigmas patriarcais que Plath tentou romper em sua jornada. Esther/Sylvia navegaram em dicotomias e dilemas internos acerca de qual caminho deveriam seguir e, na data de hoje, a hesitação de Plath ainda se demonstra atual às mulheres do século XXI:
Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. (…) Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, (…), outro era feitos de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remoo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar. Me via sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.
Outro ponto social relevante levantado por Plath durante o livro é a própria situação das pessoas acometidas por doenças mentais no século XX. Na ausência de instrumentos técnicos adequados dos profissionais da saúde para tratar problemas psicológicos, os pacientes eram submetidos a tratamentos invasivos, ineficazes e desumanos, como a lobotomia e o eletrochoque. Além do desconhecimento pela comunidade médica da época, o livro também traz à luz o desconhecimento da sociedade em relação a questões de saúde mental, momento em que Plath demonstra o preconceito havido naquela época com os pacientes psiquiátricos. Nas palavras de Esther, “quanto pior você ficava [em termos de saúde mental], mais longe eles [a sociedade, as famílias, os médicos] te escondiam.” Hoje há certo avanço de entendimentos no Ocidente em relação à saúde mental, mas é inegável que o problema reverberado por Plath ainda é uma dolorosa realidade.
Recentemente, a vida e as obras de Sylvia Plath serviram de inspiração para o álbum The Tortured Poets Department, de Taylor Swift, cantora americana que é agraciada com um doutorado honoris causa pela Universidade de Nova York e já homenageou outros ‘poetas torturados’ durante sua carreira, como Emily Dickinson, Dylan Thomas, William Wordsworth, Oscar Wilde e Virginia Wolf. O álbum traz diversas referências ao período de Sylvia Plath no manicômio, à relação da autora com a cidade de Londres e ao relacionamento de Plath com o poeta britânico Ted Hughes. Em um dos clipes, Swift representa as terapias de eletrochoque narradas por Plath e até mesmo a suposta ligação telefônica que Ted Hughes perdeu no dia do suicídio de Sylvia. Sylvia também já foi homenageada por artistas como The Cure, Lana Del Rey e Marina and the Diamonds.
Letícia Camargos
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Homem com H, filme de Esmir Filho
Dirigida por Esmir Filho, Homem com H é não somente uma cinebiografia sobre Ney Matogrosso, mas também um manifesto audiovisual sobre liberdade, corpo e resistência. O diretor entrega uma obra sensorial, fragmentada e pulsante, que traduz a essência de um artista que sempre se recusou a caber em rótulos.
Numa performance que não se limita a imitar Ney, mas também em reinventá-lo, Jesuíta Barbosa está em estado de combustão. Ele encarna um Ney que desobedece às imposições de gênero, que é um corpo político que atravessa décadas de repressão e moralismo com brilho nos olhos e purpurina na pele.
O filme acerta ao não higienizar o erotismo, a homossexualidade ou o envelhecimento. Ney é mostrado em sua inteireza: sensual, vulnerável, provocador. Em tempos de retrocessos e censura velada, essa escolha estética é também um gesto político. A nudez aqui não é gratuita, é afirmação de existência.
Homem com H é sobre um artista, sim, mas também sobre um país que ainda se debate entre o desejo de liberdade e o peso da norma. Ney Matogrosso, com sua voz aguda e sua presença indomável, continua sendo um espelho incômodo e necessário. E o filme, ao abraçar essa inquietação, nos convida a dançar fora do compasso.
O filme está disponível na Netflix.
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados