Nova correção de depósitos judiciais federais: análise dos impactos da troca da SELIC pelo IPCA
Giovanna Villegas
Em 4 de julho, o Ministério da Fazenda publicou a Portaria MF nº 1.430/2025, que, baseando-se na permissão do art. 38 da Lei nº 14.973/2024, alterou o índice de correção monetária dos depósitos em processos judiciais e administrativos contra a União e seus órgãos. A partir de 1º de janeiro de 2026, o índice de correção deixará de ser a taxa SELIC e passará a ser o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (“IPCA”), porém a alteração não é apenas ajuste técnico, mas também modifica a lógica financeira dos litígios tributários, impactando as estratégias das empresas para início de litígio, além de suscitar sérias dúvidas sobre sua conformidade com a Constituição Federal.
Até a presente mudança, os depósitos judiciais federais eram corrigidos pela SELIC. Essa taxa, definida pelo Banco Central, inclui tanto a reposição da inflação quanto uma parcela de juros reais. Na prática, isso significava que o dinheiro depositado por empresa para garantir a dívida em discussão judicial não apenas mantinha seu valor de compra, mas também gerava rendimento real. Para as empresas, o depósito judicial funcionava como garantia processual que, ao mesmo tempo, se assemelhava à aplicação financeira de baixo risco. Caso a empresa vencesse a disputa, ela levantaria o valor depositado com acréscimo financeiro. Esse sistema criava cenário de paridade, pois a União utiliza a mesma taxa SELIC para corrigir os tributos que cobra em atraso.
A nova regra, ao substituir a SELIC pelo IPCA, elimina o componente de juros reais da correção. O IPCA é o índice oficial de inflação do país e sua aplicação tem como único objetivo corrigir a moeda conforte a inflação. O impacto econômico ao contribuinte é evidente. Atualmente, por exemplo, a SELIC está em 14,75% (1) e o IPCA acumulado é de 5,25% (2), portanto, a empresa que depositar valor em juízo deixaria de ganhar quase 10 pontos percentuais de rendimento ao ano.
Ao longo de processos judiciais que podem durar anos, essa diferença representa perda financeira considerável. O capital da empresa fica imobilizado em conta que não oferece retorno, aumentando o custo de oportunidade de litigar contra o Fisco.
Com a perda de atratividade do depósito em dinheiro, as empresas são forçadas a reavaliar suas estratégias de garantia processual. Duas alternativas principais ganham destaque: o seguro garantia e a fiança bancária. O seguro garantia é uma apólice emitida por seguradora, que a empresa paga prêmio anual, que geralmente varia entre 0,2% e 4% do valor da dívida garantida para obter a apólice. A grande vantagem do seguro é que ele não imobiliza o caixa da empresa nem consome seu limite de crédito junto aos bancos. Isso permite que a companhia mantenha seus recursos disponíveis para investimentos, operações e outras necessidades.
A fiança bancária, por sua vez, é contrato firmado com banco, que atua como fiador da dívida. O custo também é comissão anual, com taxas semelhantes às do seguro, mas com desvantagem importante: a fiança bancária onera o limite de crédito da empresa. Para empresa que depende de crédito para financiar suas atividades, isso pode ser fator restritivo. Diante dessa comparação, o seguro garantia tende a ser a opção mais eficiente para a maioria das empresas de grande porte, pois libera o capital de giro e preserva a capacidade de endividamento. Mas essa escolha de garantia depende da análise individualizada das condições da empresa.
Outro ponto de atenção é a situação dos depósitos que já foram realizados e que hoje são corrigidos pela SELIC. A Lei nº 14.973/2024 revogou a legislação anterior, que criava obstáculos para a substituição desses depósitos por outras garantias, o que permite que as empresas solicitem em juízo a liberação do dinheiro depositado, substituindo-o por apólice de seguro garantia ou fiança bancária. No entanto, na prática, o processo não é simples. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) pode se opor ao pedido e a decisão final caberá ao juiz do caso, o que resulta em cenário de incerteza, com decisões diferentes para casos semelhantes. Dessa forma, a efetivação desse direito pode exigir nova disputa judicial específica para a substituição da garantia.
O aspecto mais problemático da nova regra, no entanto, é a violação do princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal. A violação ocorre porque a União passa a receber tratamento diferenciado na restituição e cobrança dos créditos tributários: para cobrar o tributo, ela continua aplicando a taxa SELIC, que é mais alta e inclui juros; mas para devolver os depósitos aos contribuintes que vencem as ações, ela utilizará o IPCA, com percentual mais baixo. Portanto, há nítida quebra na igualdade de tratamento entre as partes, pois o Fisco se beneficia de regra mais vantajosa enquanto credor e devedor.
Apesar dos pontos negativos, a Portaria MF nº 1.430/2025 trouxe algumas melhorias operacionais. Uma delas é a modernização do processo de depósito, que passará a ser feito por meio do Documento para Depósito Judicial ou Extrajudicial (“DJE”), eliminando a necessidade de comparecer presencialmente a uma agência bancária. Outro ponto positivo é a clareza sobre o que acontece quando a empresa perde a ação. A norma estabelece que, nesse caso, o valor depositado é considerado como pagamento da dívida na data em que o depósito foi feito. Isso evita que o contribuinte tenha que pagar a diferença de correção entre o IPCA (aplicado ao depósito) e a SELIC (aplicada à dívida).
Em resumo, a substituição da SELIC pelo IPCA na correção dos depósitos judiciais federais é uma medida com impactos profundos. Do ponto de vista financeiro, torna o depósito em dinheiro opção menos vantajosa e incentiva o uso de seguro garantia e fiança bancária. Do ponto de vista jurídico, a regra cria desequilíbrio na relação entre Fisco e contribuinte, que viola o princípio da isonomia e certamente será objeto de intensa discussão nos tribunais.
Para as empresas, a mudança exige a análise de suas estratégias de gestão de contencioso tributário, sendo fundamental sopesar os custos e benefícios de cada modalidade de garantia.
A assessoria jurídica especializada torna-se ainda mais crucial para navegar neste novo cenário, que demanda abordagem que integre conhecimento financeiro, tributário e processual.
Para mais informações sobre o assunto, consulte a equipe tributária do VLF Advogados.
Giovanna Villegas
Advogada da Equipe de Consultoria Tributária do VLF Advogados
(1) A taxa SELIC está disponível no site do Banco Central: https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros. Acesso em: 25 jul. 2025.
(2) O IPCA está disponível no site do IBGE: https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php. Acesso em: 25 jul. 2025.