Responsabilidade dos provedores de internet por conteúdo de terceiros não deve se restringir ao descumprimento de ordem judicial
Gabrielle Aleluia e Lucas de Oliveira Pignataro Claudino
O Marco Civil da Internet (“MCI”), estabelecido pela Lei nº 12.965/2014 e instituído há pouco mais de uma década, possui a finalidade de estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.
Dentre suas disposições, ele estabelece, no art. 19, que os provedores de aplicação de internet (1) só poderão ser civilmente responsabilizados por conteúdo de terceiro em caso de descumprimento de ordem judicial que determine sua remoção.
Muito se discutiu sobre esse dispositivo e a jurisprudência oscilava em relação ao assunto, ora para responsabilizar os provedores pelo conteúdo, independentemente de ordem judicial determinando a sua remoção (2), ora para restringir a responsabilização ao descumprimento de decisão judicial (3), ou para criar exceções envolvendo situações específicas, como a divulgação, sem consentimento, de cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado (4).
O Supremo Tribunal Federal (“STF”) reconheceu a repercussão geral do assunto nos Temas 533 e 987. No Tema 533, discutiu-se, à luz dos artigos 5º, II, IV, IX, XIV, XXXIII e XXXV; e 220, §§ 1º, 2º e 6º da Constituição Federal, se, na falta de regulamentação legal da matéria, os aludidos princípios constitucionais incidem diretamente, de modo a existir o dever de empresa hospedeira de sítio na rede mundial de computadores de fiscalizar o conteúdo publicado em seus domínios eletrônicos e de retirar do ar informações inconvenientes, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
De maneira semelhante, o Tema 987 discutiu, conforme os arts. 5º, incs. II, IV, IX, XIV e XXXVI, e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição da República, a constitucionalidade do art. 19 do MCI, que impõe condição para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos de terceiros.
Ambos os temas foram julgados recentemente, em junho de 2025, para reconhecer a inconstitucionalidade parcial da regra prevista no art. 19 do MCI, com a seguinte tese:
Reconhecimento da inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do MCI 1. O art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que exige ordem judicial específica para a responsabilização civil de provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, é parcialmente inconstitucional. Há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia). Interpretação do art. 19 do MCI 2. Enquanto não sobrevier nova legislação, o art. 19 do MCI deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE. 3. O provedor de aplicações de internet será responsabilizado civilmente, nos termos do art. 21 do MCI, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, sem prejuízo do dever de remoção do conteúdo. Aplica-se a mesma regra nos casos de contas denunciadas como inautênticas. 3.1. Nas hipóteses de crime contra a honra aplica-se o art. 19 do MCI, sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial. 3.2. Em se tratando de sucessivas replicações do fato ofensivo já reconhecido por decisão judicial, todos os provedores de redes sociais deverão remover as publicações com idênticos conteúdos, independentemente de novas decisões judiciais, a partir de notificação judicial ou extrajudicial. Presunção de responsabilidade 4. Fica estabelecida a presunção de responsabilidade dos provedores em caso de conteúdos ilícitos quando se tratar de (a) anúncios e impulsionamentos pagos; ou (b) rede artificial de distribuição (chatbot ou robôs). Nestas hipóteses, a responsabilização poderá se dar independentemente de notificação. Os provedores ficarão excluídos de responsabilidade se comprovarem que atuaram diligentemente e em tempo razoável para tornar indisponível o conteúdo. Dever de cuidado em caso de circulação massiva de conteúdos ilícitos graves 5. O provedor de aplicações de internet é responsável quando não promover a indisponibilização imediata de conteúdos que configurem as práticas de crimes graves previstas no seguinte rol taxativo: (a) condutas e atos antidemocráticos que se amoldem aos tipos previstos nos artigos 286, parágrafo único, 359-L, 359-M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal; (b) crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260/2016; (c) crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, nos termos do art. 122 do Código Penal; (d) incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas), passível de enquadramento nos arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C da Lei nº 7.716, de 1989; (e) crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio às mulheres (Lei nº 11.340/06; Lei nº 10.446/02; Lei nº 14.192/21; CP, art. 141, § 3º; art. 146-A; art. 147, § 1º; art. 147-A; e art. 147-B do CP); (f) crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes, nos termos dos arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C, do Código Penal e dos arts. 240, 241-A, 241-C, 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente; g) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A). 5.1 A responsabilidade dos provedores de aplicações de internet prevista neste item diz respeito à configuração de falha sistêmica. 5.2 Considera-se falha sistêmica, imputável ao provedor de aplicações de internet, deixar de adotar adequadas medidas de prevenção ou remoção dos conteúdos ilícitos anteriormente listados, configurando violação ao dever de atuar de forma responsável, transparente e cautelosa. 5.3. Consideram-se adequadas as medidas que, conforme o estado da técnica, forneçam os níveis mais elevados de segurança para o tipo de atividade desempenhada pelo provedor. 5.4. A existência de conteúdo ilícito de forma isolada, atomizada, não é, por si só, suficiente para ensejar a aplicação da responsabilidade civil do presente item. Contudo, nesta hipótese, incidirá o regime de responsabilidade previsto no art. 21 do MCI. 5.5. Nas hipóteses previstas neste item, o responsável pela publicação do conteúdo removido pelo provedor de aplicações de internet poderá requerer judicialmente o seu restabelecimento, mediante demonstração da ausência de ilicitude. Ainda que o conteúdo seja restaurado por ordem judicial, não haverá imposição de indenização ao provedor. Incidência do art. 19 6. Aplica-se o art. 19 do MCI ao (a) provedor de serviços de e-mail; (b) provedor de aplicações cuja finalidade primordial seja a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz; (c) provedor de serviços de mensageria instantânea (também chamadas de provedores de serviços de mensageria privada), exclusivamente no que diz respeito às comunicações interpessoais, resguardadas pelo sigilo das comunicações (art. 5º, inciso XII, da CF/88). Marketplaces 7. Os provedores de aplicações de internet que funcionarem como marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Deveres adicionais 8. Os provedores de aplicações de internet deverão editar autorregulação que abranja, necessariamente, sistema de notificações, devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos. 9. Deverão, igualmente, disponibilizar a usuários e a não usuários canais específicos de atendimento, preferencialmente eletrônicos, que sejam acessíveis e amplamente divulgados nas respectivas plataformas de maneira permanente. 10. Tais regras deverão ser publicadas e revisadas periodicamente, de forma transparente e acessível ao público. 11. Os provedores de aplicações de internet com atuação no Brasil devem constituir e manter sede e representante no país, cuja identificação e informações para contato deverão ser disponibilizadas e estar facilmente acessíveis nos respectivos sítios. Essa representação deve conferir ao representante, necessariamente pessoa jurídica com sede no país, plenos poderes para (a) responder perante as esferas administrativa e judicial; (b) prestar às autoridades competentes informações relativas ao funcionamento do provedor, às regras e aos procedimentos utilizados para moderação de conteúdo e para gestão das reclamações pelos sistemas internos; aos relatórios de transparência, monitoramento e gestão dos riscos sistêmicos; às regras para o perfilamento de usuários (quando for o caso), a veiculação de publicidade e o impulsionamento remunerado de conteúdos; (c) cumprir as determinações judiciais; e (d) responder e cumprir eventuais penalizações, multas e afetações financeiras em que o representado incorrer, especialmente por descumprimento de obrigações legais e judiciais. Natureza da responsabilidade 12. Não haverá responsabilidade objetiva na aplicação da tese aqui enunciada. Apelo ao legislador 13. Apela-se ao Congresso Nacional para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais. Modulação dos efeitos temporais 14. Para preservar a segurança jurídica, ficam modulados os efeitos da presente decisão, que somente se aplicará prospectivamente, ressalvadas decisões transitadas em julgado.
O entendimento que prevaleceu é o de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância, de modo que sua interpretação deve ser no sentido de que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e dos atos normativos expedidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (“TSE”).
Nesse sentido, em casos de crimes graves, por exemplo, elencados pela própria decisão em rol taxativo, os provedores de internet serão responsabilizados quando não realizarem a remoção imediata do conteúdo, independentemente de qualquer provocação.
Nos casos de contas denunciadas como inautênticas ou de violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, os provedores serão responsabilizados nos termos do art. 21 do MCI (5), que já admitia a remoção do conteúdo mediante notificação do participante ou de seu representante legal.
Já na hipótese de crimes contra a honra, em que se aplica o art. 19 do MCI (6), ficou definido que bastará o envio de notificação extrajudicial para que o conteúdo tenha que ser removido.
Ficaram parcialmente vencidos os Ministros André Mendonça, Edson Fachin e Nunes Marques, e o acórdão será redigido pelo Ministro Dias Toffoli. Além disso, a decisão possui efeito vinculante, devendo ser observada por todos os tribunais brasileiros de agora em diante.
Gostou do tema e se interessou pelo assunto? Mais informações podem ser obtidas com a equipe de contencioso cível do VLF Advogados.
Gabrielle Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Lucas de Oliveira Pignataro Claudino
Estagiário da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) O próprio Marco Civil define as aplicações de internet como: “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. Provedor, portanto, é aquele que oferece tais funcionalidades ao público em geral.
(2) “O provedor somente será responsabilizado caso se mantenha inerte após ter sido instado pelo usuário a retirar as mensagens causadora da ofensa aos direitos do recorrente.” (STJ, T4, AgInt no REsp n. 1.803.362/SP, Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 13/8/2019). No mesmo sentido: “o provedor de conteúdo poderá ser responsabilizado caso se mantenha inerte após ter sido instado pelo usuário a retirar mensagens causadoras de ofensa aos direitos do recorrente. Precedentes” (STJ, T4, AgInt no AREsp n. 922.355/SP, Ministro Raul Araújo, DJe de 25/11/2021)”.
(3) “Salvo as exceções previstas em lei, os provedores de aplicações apenas respondem, subsidiariamente, por danos gerados em decorrência de conteúdo publicado por terceiro após o desatendimento de ordem judicial específica (art. 19 do MCI). Busca-se evitar o abuso por parte dos usuários notificantes, o monitoramento prévio, a censura privada e remoções irrefletidas. Nessa linha, conforme jurisprudência desta Corte, não é possível impor aos sites de intermediação a responsabilidade de realizar a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos. Isto é, à exceção das hipóteses estabelecidas no MCI, os provedores de aplicações não têm a obrigação de excluir publicações realizadas por terceiros em suas páginas, por violação aos termos de uso, devido à existência de requerimento extrajudicial”. (STJ, 3, REsp n. 2.088.236/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 26/4/2024.)
(4) “A responsabilidade do provedor por atos de seus usuários, como regra, apenas se verifica quando há descumprimento de ordem judicial de remoção de conteúdo. Inteligência do art. 19 do Marco Civil da Internet, que prevê reserva de jurisdição. Excepcionalmente, em casos de divulgação, sem consentimento, de cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, há possibilidade de remoção de conteúdo mediante simples notificação da vítima” (STJ, T3, REsp n. 1.840.848/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 5/5/2022.)
(5) Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
(6) Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.