Distribuição desproporcional de lucros em sociedades anônimas fechadas
Pedro Ernesto Rocha e Isabelle Félix
A distribuição de dividendos de maneira desproporcional é mecanismo jurídico que pode ser usado em diferentes contextos. Como já visto neste Informativo, esse mecanismo – que é amplamente utilizado em sociedades limitadas (1) – aparece com frequência em planejamento sucessórios e patrimoniais (2) e em situações que, devido à contribuição dada por um sócio ao negócio por meio de seu trabalho, seja justificável que tal sócio participe dos resultados empresariais em parcela maior do que aquela que receberia se fosse considerado apenas o seu percentual de participação no capital social (3).
O presente artigo aprofunda o assunto ao analisar a possibilidade de distribuição desproporcional de lucros no âmbito das sociedades anônimas fechadas.
A Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) estabelece como um dos direitos essenciais dos acionistas, previsto no artigo 109, inciso I, o direito de participar dos lucros sociais (4). O parágrafo 1º desse dispositivo ainda estabelece, de forma expressa, que os titulares de ações de mesma classe (5) devem ter iguais direitos, disposição que, tradicionalmente, é entendida como vedação à distribuição desproporcional de dividendos em sociedades anônimas.
O conceito do artigo 109 (de que todos têm direito aos lucros e que os titulares de iguais ações devem ter iguais direitos) justifica o artigo 202, que estabelece o dividendo obrigatório com as seguintes palavras:
Art. 202. Os acionistas têm direito de receber como dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela dos lucros estabelecida no estatuto ou, se este for omisso, a importância determinada de acordo com as seguintes normas:
I - metade do lucro líquido do exercício diminuído ou acrescido dos seguintes valores:
a) importância destinada à constituição da reserva legal (art. 193); e
b) importância destinada à formação da reserva para contingências (art. 195) e reversão da mesma reserva formada em exercícios anteriores;
II - o pagamento do dividendo determinado nos termos do inciso I poderá ser limitado ao montante do lucro líquido do exercício que tiver sido realizado, desde que a diferença seja registrada como reserva de lucros a realizar (art. 197);
III - os lucros registrados na reserva de lucros a realizar, quando realizados e se não tiverem sido absorvidos por prejuízos em exercícios subseqüentes, deverão ser acrescidos ao primeiro dividendo declarado após a realização.
Ora, se todo sócio tem direito de participar dos lucros, é natural que se estabeleça a obrigatoriedade de distribuição desse lucro. E é isso que visa o artigo 202 da Lei das S.A. ao determinar qual deve ser a parcela mínima do lucro paga aos acionistas: aquela prevista no estatuto, ou, se o estatuto for omisso, aquela fixada pela lei.
Ao introduzir o parágrafo 4º ao artigo 294 na Lei das S.A. (6), a Lei Complementar nº 182/2021 (“Marco Legal das Startups”) trouxe à tona o debate sobre a possibilidade de distribuição desproporcional de dividendos em sociedades anônimas com receita bruta anual de até R$78.000.000,00, pois previu que, na hipótese de omissão do estatuto, a assembleia geral poderá estabelecer livremente sobre a distribuição de dividendos:
§ 4º Na hipótese de omissão do estatuto quanto à distribuição de dividendos, estes serão estabelecidos livremente pela assembleia geral, hipótese em que não se aplicará o disposto no art. 202 desta Lei, desde que não seja prejudicado o direito dos acionistas preferenciais de receber os dividendos fixos ou mínimos a que tenham prioridade.
A controvérsia reside nas possíveis interpretações quanto à extensão da liberdade conferida pelo parágrafo 4º às assembleias gerais das sociedades anônimas a que se refere.
Por um lado, pode-se entender que a liberdade concedida pelo novo dispositivo legal é ampla, e, portanto, poderia servir para flexibilizar a regra da proporcionalidade prevista no artigo 109.
Por outro lado, a leitura sistemática da Lei das S.A. à luz do artigo 109 e do próprio artigo 294, §4º, indica que, na realidade, a liberdade que as assembleias gerais de sociedades anônimas fechadas que faturam até R$ 78.000.000,00 passaram a ter se refere à prerrogativa de fixar como dividendo obrigatório uma parcela do lucro menor que aquela estabelecida como obrigatória pelo artigo 202 (e, portanto, não se refere à suposta permissão para que se haja distribuição desproporcional).
Esta segunda interpretação parece ter mais fundamentos para se justificar.
Isso, porque o direito de participar dos lucros sociais assegurado pelo artigo 109 é considerado indisponível e irrenunciável, isto é, independe da vontade do acionista e não se sujeita a modificações pelo estatuto social ou por deliberações dos órgãos da sociedade (7). Sob esse aspecto, a proporcionalidade na distribuição dos dividendos entre acionistas da mesma classe, prevista no parágrafo 1º do artigo 109 da Lei das S.A., seria reflexo direto dessa proteção legal, cuja eficácia permanece inalterada, uma vez que tal artigo não foi modificado pelo Marco Legal das Startups.
Ademais, o parágrafo 4º do artigo 294 da Lei das S.A., ao dar liberdade para que a assembleia estabeleça os dividendos, expressamente excepcionou a regra do artigo 202, que, por sua vez, trata de dividendo obrigatório, e não da proporcionalidade na participação nos dividendos. Assim, a liberdade conferida por tal dispositivo apenas autorizaria que, na hipótese de omissão do estatuto social, ao invés de aplicar os parâmetros legais previstos no artigo 202, a assembleia geral pudesse deliberar livremente sobre a parcela dos lucros que deveria ser distribuída como dividendo obrigatório.
É necessário acompanhar a questão com atenção, uma vez que o cenário se mantém cinzento diante dessa possível imprecisão da Lei das S.A. e da inexistência de jurisprudência sobre o tema.
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Isabelle Félix
Advogada da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Código Civil, artigo 1.007. “Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas.”
(2) Tema aprofundado no Informativo VLF - 128/2025, de 30 de maio de 2025: ÂNGELO, Paulo Vítor; ROCHA, Victor. Distribuição desproporcional de lucros em estruturas societárias familiares. Disponível em: https://vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=3154. Acesso em: 16 jul. 2025.
(3) Tema aprofundado no Informativo VLF - 129/2025, de 27 de junho de 2025: VIDIGAL, Fernanda Marra; FERRAZ, Letícia Camargos. Considerações sobre a tutela do capital intelectual nas sociedades empresárias. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=3182. Acesso em: 28 jul. 2025.
(4) Lei das S.A., artigo 109, I. “Nem o estatuto social nem a assembléia-geral poderão privar o acionista dos direitos de: I - participar dos lucros sociais.”
(5) Lei das S.A., artigo 109, parágrafo 1º. “§ 1º As ações de cada classe conferirão iguais direitos aos seus titulares.”
(6) Lei das S.A., artigo 294, § 4º. “A companhia fechada que tiver receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) poderá: (...) § 4º Na hipótese de omissão do estatuto quanto à distribuição de dividendos, estes serão estabelecidos livremente pela assembleia geral, hipótese em que não se aplicará o disposto no art. 202 desta Lei, desde que não seja prejudicado o direito dos acionistas preferenciais de receber os dividendos fixos ou mínimos a que tenham prioridade.”
(7) CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas volume 2: artigos 75 a 137 / Modesto Carvalhosa. 4. ed rev. e atual. São Paulo, SP: Saraiva, 2008. Páginas 338 a 341.