STJ responsabiliza contratante de serviço de transporte por dano causado em acidente de trânsito
Patrícia Bittencourt e Marcus Drumond
Acórdão recente proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n° 1.282.069, reconheceu a responsabilidade solidária entre transportadora e contratante do serviço de transporte por danos sofridos por vítima de acidente de trânsito ocorrido durante a prestação de serviço de transporte de mercadorias.
O fundamento utilizado para responsabilização, nos termos do voto do Ministro Relator, Luís Felipe Salomão, teria sido a conhecida “teoria do risco-proveito”, segundo a qual, de acordo com o entendimento manifestado no voto, “também é responsável aquele que tem ganho com a atividade, tendo por fundamento o princípio de que onde está o lucro, existe também o encargo (ubi emolumentum, ibis onus)” (1). Seguindo este raciocínio, houve a elaboração da ementa, a seguir transcrita:
"RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. FRETE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA TOMADORA E PRESTADORA DE SERVIÇOS. EXISTÊNCIA DE INTERESSE ECONÔMICO NO TRANSPORTE. PENSÃO VITALÍCIA. PEDIDO DE PAGAMENTO EM COTA ÚNICA. IMPOSSIBILIDADE. ART. 950, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC/2002. MAJORAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. LESÕES GRAVES. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Diante da existência de interesse econômico no serviço, consistente no lucro decorrente da entrega dos produtos a seus destinatários, exsurge, em regra, a responsabilidade solidária entre a tomadora e a empresa de transporte de cargas, devendo ambas responderem perante terceiros no caso de acidente ocorrido durante o deslocamento da mercadoria.
2. O parágrafo único do art. 950 do Código Civil de 2002, que prevê a possibilidade de pagamento de cota única de pensão decorrente de ato ilícito, não se aplica aos casos de pensão vitalícia.
3. O pagamento, em parcela única, implica, em tese, a desnaturação do próprio instituto da vitaliciedade, pois a vítima do acidente pode ficar desamparada em determinado momento de sua vida ou provocar o enriquecimento sem causa do credor, caso este faleça de forma prematura.
4. A regra de constituição de capital, aplicada pelo aresto impugnado, nos moldes da Súmula 313 do STJ e do art. 475-Q do Código de Processo Civil de 1973, segue os interesses de ambas as partes e garante o pagamento mensal da pensão vitalícia.
5. No caso, o autor experimentou lesões graves com o acidente, consistente em diversas fraturas nas pernas e no quadril, levando-o à incapacidade no percentual de 70% (setenta por cento), justificando-se, portanto, a majoração da indenização para R$65.000,00.
6. Recurso especial parcialmente provido." (2)
A decisão não surpreende quem acompanha a forma com que o STJ vem apreciando as teses de ilegitimidade dos contratantes dos serviços de transporte, mas merece atenção, especialmente para a elucidação do contexto fático que levou à consideração da responsabilidade solidária neste novo precedente.
Em primeiro lugar, é importante destacar a aplicação da “teoria do risco-proveito”, teoria utilizada para aplicação da responsabilidade objetiva, ou seja, aquela que independe da comprovação de culpa, “que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável” (3). O objetivo da aplicação de tal teoria não está ligado à responsabilidade solidária, mas sim à possibilidade de responsabilização do agente por dano que tenha decorrido do exercício da sua atividade, independentemente da demonstração de culpa deste agente.
Por certo que aquele que desenvolve a atividade de transporte, e com ela lucra, assumindo o risco da ocorrência de acidentes de trânsito no desenvolvimento das suas atividades, é o transportador. Daí a utilizar a “teoria do risco-proveito” para fundamentar a solidariedade entre a transportadora e o contratante dos serviços de transporte há uma distância enorme, inclusive em razão de, no direito brasileiro, inexistir qualquer presunção de solidariedade, que deve decorrer da lei ou da vontade entre as partes (4).
Sendo assim, é importante, ainda que não haja qualquer modulação na ementa do julgamento aqui comentado, analisar tanto o fundamento legal trazido pelo STJ para fundamentar esta solidariedade, quanto o contexto fático específico que levou a esta interpretação.
No caso que deu origem ao acórdão aqui destacado, o motorista considerado culpado pelo acidente aparentemente realizava transporte de cargas da mesma contratante de forma habitual, por meio de caminhão que levava a marca da contratante, o que incentivou a caracterização de subordinação, própria da relação de preposição. Esta, contudo, não parece ser a relação mais habitual no momento de contratação de transportadoras e, por isso, o precedente deverá ser aplicado com cuidado.
É motivo de controvérsia, em diversos contextos, a responsabilidade estabelecida pelo artigo 932, III, do Código Civil brasileiro(5), por atos praticados por empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
A doutrina adverte que tal responsabilidade não deve ser aplicada a todas as categorias de prestação de serviços, mas apenas àquelas nas quais esteja presente relação de preposição, caracterizada principalmente pela subordinação – o quê não é regra geral na relação de contratação de serviços de transporte de cargas, ainda que eventualmente possa ser o caso do acórdão aqui comentado.
A principal preocupação que se deve ter ao considerar os efeitos da ampliação do conceito de preposição é a possibilidade de transferir o risco da atividade empresarial desenvolvida pelo transportador para o contratante dos seus serviços, o que deve ser evitado.
Deve-se considerar, ademais, que a prestação de serviços de transporte de cargas possui tratamento legislativo específico (Lei nº 11.442, de 5 de janeiro de 2007), o qual estabelece a responsabilidade do transportador pelos atos inclusive de terceiros subcontratados(6), sem que exista qualquer disposição em relação a eventual solidariedade do contratante dos seus serviços, razão pela qual permanece sem fundamento legal a alegada solidariedade.
Espera-se, assim, que exista maior cuidado para aplicação do precedente do STJ de responsabilização do contratante dos serviços de transporte em acidentes de trânsito, ao caso concreto. O ideal é que não exista a ampliação indiscriminada do conceito de preposição, o qual gerará ônus desproporcional ao contratante dos serviços de transporte, que assumirá riscos de atividade que ele próprio não desenvolve.
Recomenda-se, ademais, o cuidado de que os serviços de transporte sejam objeto de contrato específico, por meio do qual a parte contratante e a transportadora possam estabelecer a responsabilidade entre si por danos causados a terceiros, independentemente de eventual reconhecimento de solidariedade pelo Poder Judiciário. Tal medida tem especial importância para garantir o direito de regresso aos contratantes dos serviços de transporte em caso de eventual condenação.
Patrícia Bittencourt
Advogada da equipe de contencioso cível do VLF Advogados
Marcus Drumond
Estagiário da equipe de contencioso cível do VLF Advogados
(1) Trecho do voto do Min. Relator Luís Felipe Salomão no julgamento do REsp nº 1.282.069/RJ, Quarta Turma do STJ, julgado em 17/05/2016, DJe 07/06/2016. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1511082&num_registro=201102244280&data=20160607&formato=PDF. Último acesso em 21. set. 2016.
(2) Ementa do acórdão proferido por ocasião do julgamento do REsp nº 1.282.069/RJ, Quarta Turma do STJ, julgado em 17/05/2016, DJe 07/06/2016. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1511082&num_registro=201102244280&data=20160607&formato=PDF. Último acesso em 21. set. 2016.
(3) GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4: responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 2012. p. 47.
(4) “Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”. Código Civil brasileiro disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Último acesso em 21. set. 2016.
(5) “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: (...) III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. Código Civil brasileiro disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Último acesso em 21. set. 2016.
(6) “Art. 8º. O transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias.” Lei nº 11.442, de 5 de janeiro de 2007, dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Último acesso em 21. set. 2016.