Exigência, dispensa e inexigibilidade de licitação no Estatuto Jurídico das Empresas Estatais (Lei nº 13.303/2016)
Maria Tereza Fonseca Dias
“Nada de novo sob o sol” (Eclesiastes, 1:9).
O objetivo deste ensaio é demonstrar que o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais (Lei nº 13.303/2016) não inovou, em diversos aspectos, o sistema de contratação direta previsto nas normas gerais de licitação, notadamente os descritos na Lei nº 8.666/1993.
Considerando que a Lei nº 13.303/2016 foi instituída - por determinação do comando descrito no art. 173, § 1º da Constituição de 1988 após o advento da Emenda Constitucional nº 19/1998 – para a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, esperava-se uma legislação, além de mais contemporânea e enxuta quanto aos processos de licitação e contratação, mais adaptada ao ambiente concorrencial.
Esperava-se, ainda, que os aspectos referentes ao “Regime Societário da Empresa Pública e da Sociedade de Economia Mista”, constantes do Título I, Capítulo II, da Lei nº 13.303/2016, funcionassem como elemento central de controle das suas contratações, ao disciplinar, entre outros aspectos, os requisitos de transparência nas Estatais (art. 8º); a necessidade de edição de regras de estruturas, práticas de gestão de riscos e controle interno (art. 9º); Código de Integridade (compliance) (art. 9º, §1º) e critérios técnicos de escolha do Administrador e de composição do Conselho de Administração (art. 16 e 17). Entretanto, reproduzindo os modelos da legislação em vigor, o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais manteve-se muito próximo da legislação que disciplina as licitações e contratos administrativos nas pessoas jurídicas de direito público.
Houve a preocupação do legislador em restringir a contratação direta, especificando as hipóteses de dispensa (numerus clausus) e os critérios gerais da contratação direta por inexigibilidade (numerus apertus). Das razões para esta disciplina podem ser elencados, desde a própria tradição construída nessa seara, no âmbito do setor público - cujo escopo é o controle da atuação dos gestores públicos e a observância dos princípios da impessoalidade/isonomia e moralidade -, até o fato de não tornar inócuo e inaplicável o procedimento descrito na lei, que visa assegurar a contratação da proposta mais vantajosa para a Empresa Estatal, a economicidade e eficiência do gasto. Isto por que, não fosse exigido o procedimento e determinadas as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação, o procedimento poderia não ser adotado como prática de contratação nas estatais.
A “exigência de licitação” e os casos de “Dispensa e de Inexigibilidade” foram estabelecidos na Seção I, do Capítulo II, denominado “Das licitações”, do “Título II” da Lei nº 13.303/2016, que trata das disposições aplicáveis às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às suas subsidiárias que explorem atividade econômica, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos.
1. Exigência de licitação
Quanto à exigência de licitação, dois aspectos foram descritos e demonstram reprodução da legislação já existente.
O primeiro é a possibilidade de participação de micro e pequenas empresas nas aquisições públicas (art. 28 § 1º da Lei nº 13.303/2016), que faz remissão expressa aos arts. 42 e 43 da Lei Complementar nº 123/2006 e já se aplicavam às licitações e contratações da legislação em vigor.
Outra questão descrita a propósito da “exigência de licitação” é a aplicação aos convênios e contratos de patrocínio, das normas de licitação e contratos da Lei nº 13.303/2016, no que couber (art. 28 § 2º). Com a exceção da denominação criada para os ajustes voltados à realização de atividades culturais e eventos (“contrato de patrocínio”) - trata-se de conteúdo similar ao do art. 116 Lei nº 8.666/1993. Nesse aspecto não foi feliz o legislador na reprodução desta norma, vez que o conceito jurídico indeterminado “no que couber”, tem trazido inúmeras divergências no regime jurídico dos convênios, no âmbito da Administração Pública, sendo difícil estabelecer, a priori, as normas a serem aplicadas a essas espécies de ajustes administrativos, gerando insegurança jurídica.
2. Casos de licitação dispensada, dispensável e inexigível
A Lei nº 13.303/2016 manteve a mesma sistemática de hipóteses de contratação direta da Lei 8.666/1993 (licitação dispensada, dispensável e inexigível). Em que pese ter reduzido significativamente as situações de licitação dispensada, o Estatuto das Empresas Estatais poderia ter aprimorado o modelo da Lei nº 8.666/1993 e excluído desta tipologia justamente as licitações “dispensadas” (art. 17 da Lei nº 8.666/1993), que nada mais são do que casos de inexigibilidade, em que não há competitividade. Na Lei nº 8.666/1993 as licitações dispensadas foram previstas para a alienação de bens públicos, móveis e imóveis, conforme situações que especifica.
Como demonstrado na lista a seguir, o que se observou foi a reprodução das normas da Lei nº 8.666/1993, tendo sido anotado no final do texto os aspectos que, embora semelhantes, trazem alguma distinção, se houver.
1) Licitação dispensada para contratações (produtos, serviços ou obras) especificamente relacionados com os objetos sociais das estatais.
Lei 13.303/2016: Art. 28, § 3º, I
Lei 8.666/1993: Art. 17, II, “e”(1)
2) Inexigibilidade de licitação vinculada a operações realizadas no âmbito do mercado de capitais.
Lei 13.303/2016: Art. 28, § 4º
Lei 8.666/1993: Art. 17, II, “c”
3) Dispensa de licitação para obras e serviços de engenharia em razão do valor.
Lei 13.303/2016: Art. 29, I (2)
Lei 8.666/1993: Art. 24, I
4) Dispensa de licitação para outros serviços e compras em razão do valor.
Lei 13.303/2016: Art. 29, II (3) [Art. 29 § 3º (4)]
Lei 8.666/1993: Art. 24, II
5) Dispensa na hipótese de licitação deserta(5).
Lei 13.303/2016: Art. 29, III
Lei 8.666/1993: Art. 24, V
6) Dispensa em caso de sobrepreço (6).
Lei 13.303/2016: Art. 29, IV
Lei 8.666/1993: Art. 24, V
7) Dispensa para compra e locação de imóveis.
Lei 13.303/2016: Art. 29, V
Lei 8.666/1993: Art. 24, X
8) Dispensa de remanescente de obra.
Lei 13.303/2016: Art. 29, VI
Lei 8.666/1993: Art. 24, XI
9) Dispensa para contratação de instituição de pesquisa.
Lei 13.303/2016: Art. 29, VII
Lei 8.666/1993: Art. 24, XIII
10) Dispensa para aquisição de componentes e peças para manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica.
Lei 13.303/2016: Art. 29, VIII
Lei 8.666/1993: Art. 24, XVII
11) Dispensa para contratação de associação de pessoas com deficiência física, sem fins lucrativos.
Lei 13.303/2016: Art. 29, IX
Lei 8.666/1993: Art. 24, XX
12) Dispensa para a contratação de concessionários de serviço público (energia, gás e outros).
Lei 13.303/2016: Art. 29, X
Lei 8.666/1993: Art. 24, XXII
13) Dispensa para as contratações entre empresas públicas ou sociedades de economia mista.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XI
Lei 8.666/1993: Art. 24, XXIII
14) Dispensa para contratação de coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XII
Lei 8.666/1993: Art. 24, XXVII
15) Dispensa para o fornecimento de bens e serviços que envolvam, cumulativamente, alta complexidade tecnológica e defesa nacional.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XIII
Lei 8.666/1993: Art. 24, XXVIII
16) Dispensa para contratação de ICT, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empresas, para atividades de pesquisa.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XIV
Lei 8.666/1993: Art. 24, XXV
17) Dispensa em situações de emergência e quando caracterizada urgência.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XV
Lei 8.666/1993: Art. 24, IV
18) Dispensa para transferência de bens a órgãos e entidades da administração pública, inclusive quando efetivada mediante permuta.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XVI
Lei 8.666/1993: Art. 17, I, “b” e “c”
19) Dispensa para doação de bens móveis para fins e usos de interesse social.
Lei 13.303/2016: Art. 29, XVII
Lei 8.666/1993: art. 17, II, “a”
20) Dispensa para na compra e venda de ações, de títulos de crédito e de dívida e de bens que produzam ou comercializem(7).
Lei 13.303/2016: Art. 29, XVIII
Lei 8.666/1993: Art. 24, VIII
21) Convocação dos licitantes remanescentes.
Lei 13.303/2016: Art. 29, §1º(8)
Lei 8.666/1993: Art. 64, § 2º
22) Cláusula geral de inexigibilidade de licitação por inviabilidade de competição.
Lei 13.303/2016: Art. 30
Lei 8.666/1993: Art. 25
23) Inexigibilidade em virtude de fornecedor ou representante comercial exclusivo.
Lei 13.303/2016: Art. 30, I (9)
Lei 8.666/1993: Art. 25, I
24) Inexigibilidade para a contratação de serviços técnicos especializados de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização.
Lei 13.303/2016: Art. 30, II, alíneas, “a” a “g”
Lei 8.666/1993: Art. 25, II e art. 13
25) Conceito de notória especialização para fins de contratação direta.
Lei 13.303/2016: Art. 30, § 1º
Lei 8.666/1993: Art. 25, § 1º
26) Elementos necessários para a instrução do processo de contratação direta.
Lei 13.303/2016: Art. 30, § 3º, incisos I, II e III
Lei 8.666/1993: Art. 26, Parágrafo Único, incisos I, II e III
3. Inovações da Lei nº 13.303/2016 em matéria de dispensa e inexigibilidade de licitação
É importante ressaltar que, em que pese a reprodução do sistema de contratação direta da Lei nº 8.666/1993, o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais apresentou também algumas inovações, tratadas a seguir.
Em primeiro lugar destaca-se que a Lei nº 13.303/2016 reduziu a quatro situações as hipóteses de licitação “dispensada” (art. 28, § 3º, I e II e art. 29, XVI e XVII), enquanto a Lei nº 8.666/1993 prevê 16 situações distintas. Em duas situações, porém (art. 29, XVI e art. 29 XVII da Lei nº 13.303/2016), diversamente da disciplina da Lei nº 8.666/1993, o Estatuto das Estatais tratou o que era considerado licitação dispensada como dispensável, ou seja, sujeita a juízo de oportunidade e conveniência dos dirigentes das estatais a realização da contratação direta (10).
Mesmo havendo identidade entre as leis, como indicado na Lista acima, a Lei nº 8.666/1993 previu muito mais hipóteses de contratação direta por dispensa de licitação do que a Lei nº 13.303/2016. No art. 24 da Lei nº 8.666/1993 foram previstas 34 hipóteses de dispensa, enquanto foram 18 as descritas no art. 29 da Lei nº 13.303/2016, sendo duas delas situações de licitação “dispensada” na Lei nº 8.666/1993, como discutido acima.
Outra inovação do Estatuto das Estatais foi a previsão de uma cláusula geral de inexigibilidade de licitação por inviabilidade de procedimento competitivo, nos casos em que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo (art. 28, § 3º, II). A própria lei incumbiu-se de tentar identificar as situações consideradas “oportunidades de negócio”, que foram descritas como “[...] a formação e a extinção de parcerias e outras formas associativas, societárias ou contratuais, a aquisição e a alienação de participação em sociedades e outras formas associativas, societárias ou contratuais e as operações realizadas no âmbito do mercado de capitais, respeitada a regulação pelo respectivo órgão competente.” (art. 28, § 4º).
Esta hipótese, bastante ampla quanto as suas possibilidades interpretativas, abrirá inúmeras possibilidades de reformulação do quadro societário das empresas estatais para além do que hoje é permitido em matéria de contração direta.
Quanto às hipóteses de dispensa de licitação em virtude do valor da contratação - conforme já registrado na Lista acima, itens 3 e 4 – o art. 29 § 3º do Estatuto das Estatais estabelece que tais valores podem ser alterados por deliberação do Conselho de Administração da empresa pública ou sociedade de economia mista, admitindo-se valores diferenciados para cada sociedade, para refletir a variação de custos. Assim, dependendo da deliberação do Conselho, o aumento desses valores pode significar a ampliação das possibilidades de contratação direta. Entretanto, a motivação da razão da alteração dos valores deve ser explicitada pelo Conselho.
Outras novidades em sede de contratação direta pelas Estatais dizem respeito à responsabilização dos administradores e até fornecedores das companhias (como a aplicação de sanções por improbidade administrativa e responsabilidade solidária) nas hipóteses de contratação em situações de emergência e contratação direta com sobrepreço ou superfaturamento.
Já há previsão na Lei nº 8.666/1993 - que se aplica também às empresas estatais por força do art. 41 da Lei nº 13.303/2016 – de sanções penais (detenção e multa) para as contratações diretas fora do permissivo legal ou sem a observância das formalidades descritas em lei (11).
Nos termos do art. 29, § 2º da Lei nº 13.303/2016, a contratação direta com base em situações de emergência (art. 29, XV), quando caracterizada urgência, não dispensará a responsabilização de quem, por ação ou omissão, tenha dado causa ao motivo ali descrito, inclusive no tocante ao disposto na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992).
A responsabilidade solidária pelo dano causado, atribuída a quem houver decidido pela contratação direta e ao fornecedor ou prestador de serviços, foi estabelecida no art. 30, § 2º, da Lei nº 13.303/2016, se comprovado, pelo órgão de controle externo, em qualquer dos casos de dispensa de licitação, sobrepreço ou superfaturamento. A regra traz importante inovação e clara medida de combate à corrupção, imputando responsabilidade solidária para o agente público e para o particular - fornecedor de bens ou prestador de serviços às estatais. Tal regra amplia o controle externo da administração pública, notadamente o exercido pelos Tribunais de Contas.
Em que pese poucas novidades, elas poderão ser suficientes para trazer um pouco mais de flexibilidade para as contratações das Estatais, com a respectiva responsabilidade de seus gestores.
Maria Tereza Fonseca Dias
Coordenadora da equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Em que pese a semelhança entre as normas, a Lei nº 8.666/1993 restringe a hipótese a contratações envolvendo bens móveis. Assim, o escopo e a abrangência do Estatuto das Estatais é mais amplo, pois envolve também a contratação de serviços e obras.
(2) Para obras e serviços de engenharia, a dispensa, na Lei nº 13.303/2016 é de até R$ 100.000,00 (cem mil reais), enquanto na Lei nº 8.666/1993 é de 15.000 (quinze mil reais).
(3) Para outros serviços, compras e alienações há, na Lei nº 13.303/2016, dispensa de valor de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), enquanto na Lei nº 8.666/1993, este valor é de 8.000,00 (oito mil reais).
(4) Além disso, a Lei nº 13.303/2016 prevê expressamente que “Os valores estabelecidos nos incisos I e II do caput [art. 29] podem ser alterados, para refletir a variação de custos, por deliberação do Conselho de Administração da empresa pública ou sociedade de economia mista, admitindo-se valores diferenciados para cada sociedade”.
(5) Quando não acudirem interessados à licitação anterior.
(6) Quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado.
(7) É o item que guarda maior diferença entre as leis comparadas. Na Lei nº 8.666/1993 a dispensa é autorizada “[...] para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.” Ao ser adaptada ao ambiente corporativo, o escopo da regra foi ampliado.
(8) No estatuto das estatais (Lei nº 13.303/2016) a redação do dispositivo que consta do art. 64 § 2º da Lei nº 8.666/1993 foi aperfeiçoada para constar a regra de que a convocação dos licitantes remanescentes será efetuada “[...] desde que o respectivo valor seja igual ou inferior ao orçamento estimado para a contratação, inclusive quanto aos preços atualizados nos termos do instrumento convocatório.” A Lei nº 8.666/1993 não fazia menção ao orçamento estimado para a contratação.
(9) O Estatuto Jurídico da Empresa Pública e da Sociedade de Economia mista não vedou a preferência por marca e nem incluiu as mesmas exigências procedimentais previstas no art. 25, I, da Lei nº 8.666/1993 para contratação direta por inexigibilidade, na hipótese de fornecedor ou representante comercial exclusivo, quais sejam: “[...] atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes”.
(10) Dispensa para transferência de bens a órgãos e entidades da administração pública, inclusive quando efetivada mediante permuta (art. 29, XVI) e dispensa para doação de bens móveis para fins e usos de interesse social (art. 29, XVII).
(11) Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.