A sociedade em conta de participação como contrato de investimento coletivo: a CVM e os condo-hotéis
Pedro Ernesto Rocha
A sociedade em conta de participação (“SCP”) é uma das formas de empreender previstas em nosso ordenamento jurídico. Ela é um tipo societário que tem como principal característica o fato de ser oculta, por não contar com personalidade jurídica, tampouco com registro público ou com cadastros em entes registrais (1). Assim, a SCP não existe para ninguém além de seus sócios.
A SCP tem dois tipos de sócios: o sócio ostensivo, que atua em seu próprio nome perante terceiros; e o sócio participante, que não atua perante terceiros, mas, sim, tão somente perante o sócio ostensivo. Desta feita, o terceiro contrata com o sócio ostensivo uma obrigação que, na realidade, será adimplida pelo sócio ostensivo e pelo sócio participante conjuntamente, ainda que o terceiro contratante não tenha ciência disso. Perante o terceiro, entretanto, responde o sócio ostensivo, exclusivamente.
Atualmente em voga, os condo hotéis geralmente se valem da sociedade em conta de participação para se estruturar. Na prática ocorre o seguinte: uma incorporadora imobiliária se associa a uma construtora e a uma administradora hoteleira, para realizar a incorporação imobiliária correspondente, construir e operar um empreendimento hoteleiro. Para tanto a incorporadora e seus parceiros ofertam ao mercado as unidades autônomas ou as frações ideias de um hotel (ou seja, um quarto ou uma fração dele) a serem construídas. O vínculo entre as partes é estabelecido por meio de um contrato de promessa de compra e venda de unidade autônoma ou de frações ideias e, também, de um contrato de sociedade em conta de participação. Por esse contrato de sociedade, fica ajustado que a administradora hoteleira será a sócia ostensiva e os adquirentes das unidades autônomas (os investidores) serão os sócios participantes, de modo que a administradora hoteleira zelará por administrar e manter o hotel em funcionamento, e os sócios participantes permitirão que a administradora controle as suas respectivas unidades autônomas, com direito de receber um dividendo decorrente do lucro que o empreendimento eventualmente obtiver e mantendo a obrigação de fazer aportes caso o empreendimento seja deficitário.
O exemplo traz à discussão a regulação desse tipo de empreendimento. Ora, a incorporadora e seus parceiros ofertam ao mercado uma oportunidade de investimento por meio de vários contratos conexos, sendo que “qualquer um” pode resolver realizar um investimento com o objetivo de obter lucros por meio da administração hoteleira realizada pela administradora. Como estes contratos ofertados ao mercado configuram contratos de investimento coletivo, por gerarem direito de participação, de parceria ou de remuneração, cujos rendimentos advêm do esforço apenas de uma das partes envolvidas (a administradora), eles configuram uma oferta pública de valor mobiliário, que, como tal, tem sua emissão (oferta ao mercado) regulada pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) (2) .
A CVM corrobora esse entendimento. É o que se depreende do Ofício/CVM/SER/Nº 49/2014 (3), emitido pela Superintendência de Relação com Empresas. É possível dizer, portanto, que os empreendimentos imobiliários que visem se estruturar da mesma maneira que o exemplo acima descrito deverão ser registrados na CVM ou deverão dela receber uma expressa dispensa de registro.
Até o momento, à exceção do caso objeto do Processo CVM nº 2013-12207 (4), a CVM dispensou do registro todos os empreendimentos de condo hotéis que voluntariamente lhe procuraram para solicitar a dispensa (três no total). Se a CVM dispensou o registro, é correto interpretar que ela entendeu que os empreendimentos (consubstanciados pelos contratos de investimentos coletivos, dentre os quais se inclui o contrato de constituição de sociedade em conta de participação) seriam realizados de maneira correta e sem lesar (ou sem ter o potencial de lesar) os investidores (5). Os empreendimentos que não se registraram ou não obtiveram a dispensa do registro na CVM, caso tenham eventualmente lesado investidores, poderão ser penalizados pela CVM (6), ainda que esta não possa determinar a reparação da eventual lesão sofrida pelo investidor (7), prerrogativa que cabe ao judiciário.
Diante deste quadro, um investidor de um empreendimento que não teve sucesso pelos mais variados motivos (como má gestão ou conjecturas econômicas prejudiciais ao modelo de negócio) ou que até mesmo não saiu do papel (com obras inacabadas ou com descapitalização da construtora), se vê atado na seguinte questão: como recuperar o investimento?
Atualmente essa questão não encontra resposta direta. Sabe-se que, desde que os contratos de investimento assinados pelo investidor não contenham cláusula compromissória (o que levaria uma eventual lide a um procedimento arbitral), o judiciário poderá ser demandado (direito de ação, previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988), todavia, não há como prever a interpretação dos nossos magistrados quanto ao caso. Já há ação em curso, na qual investidores que entenderam ter sido lesados em um determinado empreendimento ocorrido no Rio de Janeiro (notadamente, trata-se do mesmo empreendimento objeto do Processo CVM nº 2013-12207 já citado neste artigo) pedem reparação por danos materiais, porém tal ação ainda não tem decisão definitiva (8).
A princípio, duas correntes são possíveis, a saber: (1ª) uma vez que a CVM registrou o empreendimento (a emissão e a oferta ao mercado dos contratos de investimento a ele vinculados) ou o dispensou do registro, não haverá que se falar em reparação ao investidor por prejuízos decorrentes do insucesso do empreendimento, exceto se houver culpa, dolo, fraude e etc., por parte da administradora hoteleira ou da incorporadora ou da construtora; (2º) se não houve o registro ou a dispensa dele pela CVM, o judiciário poderá entender pela reparação, por várias razões, dentre as quais a irregularidade da oferta, que teria sido realizada inadequadamente (sem observar requisitos legais) e com o potencial de lesar a poupança popular.
Verificar o histórico das companhias envolvidas no empreendimento, o mercado e a regularidade da oferta (houve registro na CVM? Os documentos disponibilizados pelos ofertantes são suficientemente claros para transparecer os riscos do negócio?), portanto, são atitudes que podem minorar perdas (ou as chances de perdas) futuras. Em meio a esse quadro de dúvida, e da ausência de parâmetro judicial sobre o caso, o que resta ao investidor que pretende envolver-se em negócio dessa natureza é ser diligente, e ao investidor que viu frustradas suas pretensões de lucro e sentiu-se lesado, buscar a reparação judicial ou arbitral, se for o caso.
Pedro Ernesto Rocha
Advogado da equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
(1) Recentemente a Instrução Normativa 1.470/2014 da Receita Federal passou a exigir que as sociedades em conta de participação se inscrevam no CNPJ. Vale destacar, a inscrição não atribui à SCP personalidade jurídica.
(2) A lei: diz a Lei 6.385/76 que “Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: [...] IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”; e diz a Instrução Normativa 400/2003 da Comissão de Valores Mobiliários que “Art. 2º Toda oferta pública de distribuição de valores mobiliários nos mercados primário e secundário, no território brasileiro, dirigida a pessoas naturais, jurídicas, fundo ou universalidade de direitos, residentes, domiciliados ou constituídos no Brasil, deverá ser submetida previamente a registro na, nos termos desta Instrução”.
(3) Disponível em http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=9218-0.HTM. Ainda sobre o assunto, vale verificar os entendimentos da CVM presentes no do Ofício/CVM/SER/Nº 60/2014 (http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=9274-0.HTM – esse caso não envolve sociedades em conta de participação, mas é também um caso de condo hotel e de contrato de investimento coletivo) e do Ofício/CVM/SER/Nº 57/2014 (http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=9267-0.HTM).
(4) Trata-se do mesmo processo objeto do Ofício/CVM/SER/Nº 60/2014 citado na nota de rodapé 3 acima.
(5) A CVM tem como função precípua proteger os investidores (proteger a poupança de cada um deles, a chamada poupança popular) de captações abusivas. É o que se entende da leitura do artigo 4º, ‘i’ e ‘iv’ da Lei 6.385/1976 e art. 1º da Instrução Normativa 400/2003 da CVM.
(6) Como aconteceu no caso descrito em notícia da Revista Exame, disponível em: http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/noticias/cvm-suspende-oferta-de-investimento-em-hoteis-no-rio .
(7) Art. 11 da Lei 6.385/1976.
(8) Processo Nº 0249389-74.2014.8.19.0001, TJRJ.