Necessidade de comprovação da má-fé para devolução em dobro será decidida pelo STJ
Stefânia Bonin
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará processo (1) sobre as hipóteses de aplicação da repetição em dobro prevista no art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A mesma matéria está afetada na Primeira Seção da Corte (de Direito Público), razão pela qual os Ministros da Segunda Seção decidiram, por unanimidade, levar a questão à Corte Especial. O que se pretende é evitar decisões conflitantes na Casa, tendo em vista que na Primeira Seção é dispensável a comprovação da má-fé do credor, ao contrário do entendimento adotado pelas turmas de Direito Privado.
A devolução em dobro está prevista no parágrafo único, do art. 42, do CDC que determina que “o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros, salvo hipótese de engano justificável”.
O que precisa ser definido pelo STJ são as hipóteses em que a restituição dobrada é devida, sendo ou não necessária a comprovação da má-fé do autor da cobrança.
As decisões mais recentes da Corte sobre esse tema tem sido no sentido de que o consumidor só tem direito ao dobro do valor cobrado indevidamente se, além de demonstrado o pagamento indevido, ficar comprovada a má-fé do credor.
O referido entendimento é alvo de diversas críticas, fazendo com que o assunto ainda careça de discussão.
Em linhas gerais, confrontam-se duas correntes a respeito do tema: uma que consagra o entendimento de que a cobrança indevida feita de boa-fé não deve dar ensejo à repetição em dobro do indébito; e outra que entende aplicável a sanção civil independentemente da boa-fé do fornecedor, como medida inibitória de abusos.
Aqueles que defendem a prescindibilidade da má-fé alegam ausência de previsão legal deste requisito para a devolução em dobro, fato que, por si só, impediria o Judiciário de aplicar tal regra.
Sendo assim, o “engano justificável” trazido no texto da lei se torna praticamente presumido e a devolução se dará na forma simples, exceto quando o fornecedor tiver consciência da ilicitude e do prejuízo causado ao consumidor.
Além disso, critica-se a inversão o ônus da prova em desfavor do consumidor, já que a referida prova de má-fé, diante da interpretação dada ao assunto, deve ser feita pelo consumidor, haja vista que o fornecedor não irá provar sua própria mácula da cobrança. Melhor dizendo, estaria sendo dado ao consumidor o direito de cobrar em dobro, mas a sua efetivação fica a depender de prova de difícil verificação.
Em sentido contrário, se encontra o entendimento firmado pelo STJ no qual havendo a cobrança indevida por parte do fornecedor, este só deverá devolver o excesso em dobro se ficar demonstrada a má-fé.
Para tanto, aplica-se por analogia a Súmula 159 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece que “cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil”.
O referido dispositivo do Código Civil de 1916 tratava de situação prevendo a devolução em dobro contra aquele que demandasse por dívida já paga. Contudo, em que pese a revogação do antigo Código Civil, a discussão permanece atual, tendo em vista que o preceito adotado no art. 1.531, permanece vigente na redação do art. 940, do Código em vigor, que assim dispõe: “Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”
Portanto, não se permite a exigência da restituição em dobro se não houver má-fé por parte do fornecedor na cobrança indevida. Ou seja, para a imposição da sanção civil a que se refere o parágrafo único, do art. 42 do CDC, imprescindível a caracterização de má-fé.
Para tanto, não são suficientes apenas a aplicação do CDC e a configuração de cobrança abusiva e, portanto, não devem ensejar a condenação do credor à repetição de indébito de forma dobrada. Assim, a má-fé como o critério definidor da forma de restituição (simples ou dobrada) deve ser analisada em cada caso concreto.
O que se percebe é que existe a preocupação de chancelar o enriquecimento sem causa do consumidor, o que, evidentemente, não é admissível, mormente em se considerando que consumidores poderiam tentar se beneficiar dessa norma na medida em que mesmo conscientes de ser indevida a cobrança visariam receber em dobro o que pagassem indevidamente.
Assim, não se pode permitir uma condenação indiscriminada à repetição dobrada do indébito, visando evitar enriquecimento sem causa do consumidor.
Por todo exposto, o que se conclui é que a interpretação dada ao parágrafo único, do art. 42 do CDC ainda está aberta e que o julgamento em questão pode alterar substancialmente e com grande repercussão a jurisprudência no Direito Privado. Num parêntesis, cumpre destacar a importância dos precedentes judiciais, para proporcionar segurança jurídica e a isonomia do tratamento, evitando que casos idênticos postos em juízo sejam afetados por decisões colidentes.
Stefânia Bonin
Advogada da equipe de contencioso consumerista do VLF Advogados
(1) Recurso Especial nº 1.585.736 / RS (2015/0030405-4).