STJ decide: dívidas contraídas em jogos de azar podem ser cobradas
Marcus Drumond
Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião de julgamento do Recurso Especial nº 1.628.974/SP, decidiu à unanimidade ser possível realizar a cobrança de dívida contraída no exterior, mesmo que a obrigação tenha se dado em decorrência de jogo de azar considerado ilegal no Brasil.
O caso tratou de Ação Monitória ajuizada por um cassino norte-americano contra um brasileiro, que teria contraído dívida oriunda de jogo de pôquer por meio da assinatura de 5 (cinco) documentos de concessão de crédito no valor de US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares), equivalentes a R$2.306.400,00 (dois milhões trezentos e seis mil e quatrocentos reais) à época.
Em primeira instância os pedidos do cassino foram julgados procedentes, condenando o brasileiro ao pagamento integral da cobrança, convertidos os valores em reais com base na cotação da data da contratação. Em sede de apelação, a decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal paulista(1).
O brasileiro interpôs Recurso Especial com fundamento na alínea “a” do art. 105, III(2), alegando violação de dispositivos do Código de Processo Civil de 1973, vigente à época de propositura da ação, assim como de outros dispositivos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, do Código Civil e da Lei do Cheque(3).
O acórdão, que ainda aguarda lavratura e publicação, foi formado com base no voto do Ministro Relator Ricardo Villas Boas Cuêva, que estabeleceu profunda análise da norma material aplicável ao caso e também da LINDB, mais precisamente dos arts. 9º e 17 do referido diploma. Entendeu o Relator ser o caso de aplicação da regra de conexão disposta no art. 9° da LINDB(4), determinando ser a lei americana do Estado de Nevada, onde o jogo de pôquer é lícito, a aplicável ao caso, uma vez que lá foi onde a obrigação se constituiu. Contudo, ressaltou que a aplicação do direito estrangeiro restaria limitada pelas restrições do art. 17 da LINDB(5), que dispõe sobre a ineficácia de leis que ofendam a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
Nesse sentido, entendeu o Relator inexistir violação à soberania nacional ou resultado incompatível com a ordem pública no contexto dos autos, por haver equivalência entre a norma norte-americana e a brasileira, pois ambos os ordenamentos permitem determinados jogos de azar mediante supervisão estatal, admitindo-se, inclusive, a cobrança de dívida (art. 814, §2º do Código Civil).
O Ministro Villas Boas Cuêva concluiu afirmando que “aquele que visita país estrangeiro, usufrui de sua hospitalidade e contrai livremente obrigações lícitas não pode retornar a seu país de origem buscando a impunidade civil”, motivo este que não só contrariaria a ordem pública, pela configuração de lesão à boa-fé de terceiro, como poderia propiciar, no caso, enriquecimento sem causa.
Por fim, no que diz respeito à alegação de violação à norma processual, ao analisar a alegação de cerceamento de defesa, o Relator entendeu que, diante da dúvida gerada em torno da falta de exigência de garantia pelo cassino para a concessão de vultoso crédito e dos demais fatos trazidos pelo brasileiro, deveria ser reaberta a fase de instrução probatória do processo, motivo pelo qual determinou a remessa dos autos à instância originária.
Significa dizer, portanto, que o processo retornará à primeira instância para a produção de novas provas, o que poderá alterar completamente as decisões que foram proferidas. Todavia, necessário ponderar que, a partir de agora, há nos autos robusta decisão do STJ, que provavelmente servirá de respaldo para que, tanto em primeira, quanto em segunda instâncias, as decisões continuem sendo no sentido de dar validade à cobrança feita pelo cassino.
Acesse aqui o voto do Relator disponibilizado no site do STJ.
Marcus Drumond
Estagiário da equipe de Contencioso Estratégico
(1) O acórdão do TJSP impugnado, foi assim ementado: CERCEAMENTO DE DEFESA – INEXISTÊNCIA – Oitiva de testemunhas, novos documentos e perícia – Provas inúteis. PRESCRIÇÃO – Dívida líquida constante de instrumento particular – Prazo quinquenal (art. 206, § 5º, I, do Código Civil) – Preliminar rejeitada. MONITÓRIA – Cheques emitidos em favor de cassino norte-americano – Prova escrita sem eficácia de título executivo – Dívida de jogo, de cobrança vedada no Brasil – Irrelevância – Débito adequado às normas do país em que constituído – Art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Sentença mantida – Recurso desprovido.
Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=8793821&cdForo=0
(2) Art. 105 Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
(...)
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
Consulta realizada em 18/07/2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
(3) Transcrição de trecho do relatório do voto do Ministro Relator:
(...)
Aponta o recorrente, em suas razões, violação dos arts. 42, 64, 330, 365, § 2º, 337, 535, II e 814 do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973); 50 da Lei nº 3.688/41; 9º e 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB); 476, 206, § 3º, e 940 do Código Civil e 51 da Lei do Cheque.
(4) Art. 9° Para qualificar e reger as obrigações aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.
Consulta realizada em 18/07/2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm
(5) Art. 17° As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
Consulta realizada em 18/07/2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm