A uniformização do prazo prescricional para a reparação civil decorrente de responsabilidade contratual e extracontratual
Gabrielle Aleluia e Gustavo Caires
Decorridos mais de 15 anos da entrada em vigor do Código Civil ("CC") de 2002, ainda existe discussão em torno do enquadramento da responsabilidade contratual como “reparação civil”: se sujeita ao prazo prescricional de três anos de que trata o art. 206, §3º, V, do CC/2002 (1), como ocorre na hipótese de responsabilidade extracontratual; ou, se seria aplicável o art. 205 (2), com prazo de dez anos para prescrição.
No Código de 1916, a distinção para a aplicação dos prazos prescricionais dava-se em torno do direito alegado (se pessoal ou real), sendo a reparação por danos decorrentes de responsabilidade contratual considerada de natureza pessoal e sujeita à regra geral. Ocorre que o Código atual não faz mais essa distinção, dando margem ao entendimento de que o prazo prescricional de três anos seria aplicado a qualquer pretensão envolvendo a reparação de dano, seja de natureza contratual ou não (art. 206, §3º, V).
A ressalva à regra geral seria apenas para disposições especiais, como ocorre com o Código de Defesa do Consumidor ("CDC"), por exemplo. Para muitos, no entanto, a prescrição referente à responsabilidade contratual não se enquadraria como espécie de “reparação civil”, de maneira que, inexistindo previsão legal específica a esse respeito, seria aplicável o prazo decenal.
Conforme já noticiado anteriormente neste informativo, o assunto foi enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ") em diversas ocasiões, prevalecendo, ao longo do último decênio, a prescrição de dez anos – embora com precedentes aplicando o prazo de três anos (4), além do Enunciado n. 419 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça de novembro de 2011 (5).
Recentemente, porém, o entendimento dominante foi superado pela Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.281.594/SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze.
A matéria central do recurso era justamente o prazo prescricional aplicável às pretensões reparatórias amparadas em responsabilidade civil contratual na égide do CC/2002. Sobre o tema, o Ministro Marco Aurélio Bellizze considerou, nos moldes do que já havia decidido no julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos n. 1.360.969/RS e n. 1.361.182/RS, da Segunda Seção, que a unificação dos prazos prescricionais é importante para garantir maior segurança, previsibilidade e uniformidade de tratamento nas relações jurídicas contemporâneas. Para ele:
[...] a par das disposições legais especiais (v.g. o acidente de consumo, cuja pretensão estará sujeita ao prazo quinquenal do art. 27 do CDC), qualquer outra hipótese de reparação civil inespecificamente considerada, seja ela decorrente de responsabilidade contratual (inadimplemento) ou extracontratual (risco ou dano, inclusive moral), deverá observar como regra o prazo prescricional trienal da pretensão a ela relativa.
Nesse sentido, conforme reconhecido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
[...] o termo "reparação civil", constante do art. 206, § 3º, V, do CC/2002, deve ser interpretado de maneira ampla, alcançando tanto a responsabilidade contratual (arts. 389 a 405) como a extracontratual (arts. 927 a 954), ainda que decorrente de dano exclusivamente moral (art. 186, parte final), e o abuso de direito (art. 187). Assim, a prescrição das pretensões dessa natureza originadas sob a égide do novo paradigma do Código Civil de 2002 deve observar o prazo comum de três anos.
O referido entendimento não é pacífico entre doutrinadores. Judith Martins-Costa, por exemplo, defende que a adoção do prazo trienal aplainaria “[...] em um mesmo molde diferentes espécies de danos, provindos de diferentes fatos e cujas consequências são regidas por diferentes valores e regimes, não atende às diretrizes que travejam o Código Civil, razão pela qual a viragem jurisprudencial pretendida pelo recente aresto do Superior Tribunal de Justiça não tem razão de ser” (6).
Para a festejada civilista, o regime jurídico do dano contratual e extracontratual seria nitidamente distinto, como se poderia constatar no tratamento dado aos seguintes temas: (a) capacidades das partes; (b) ônus da prova; (c) avaliação da culpa; (d) importância dos graus de culpa; (e) termo inicial do ressarcimento e (f) autonomia para regular a extensão do dano e do ressarcimento, por exemplo; além do mais, outros ordenamentos (Itália, Espanha e Portugal) também reconheceriam a distinção entre as duas modalidades de responsabilidade, com prazos prescricionais distintos em cada um dos casos (7).
Escorada nesses argumentos, Judith Martins-Costa critica o citado julgado do STJ:
Não se compreende, desse modo, como a previsão de regras diferentes para disciplinar institutos distintos e destinados a tutelar necessidades práticas tão diversas poderia violar o princípio da isonomia previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República, como afirma o julgado, forte na lição do jurista que cita. A dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual é tradicional e encontra abrigo na legislação brasileira. Seu reflexo na disciplina da prescrição deve, assim, ser respeitado. (8)
De toda sorte, o precedente está posto e deve prevalecer até que, eventualmente, seja superado. Outra questão que se pode cogitar é o marco para a contagem da prescrição, (a) se do ilícito contratual; ou (b) do fim da relação contratual, por exemplo. Na primeira hipótese, é preciso considerar que, como a relação contratual pode ser duradoura, nada impede que determinada violação do contrato seja longamente negociada entre as partes, num cenário em que, não raro, o prazo de três anos poderia precipitar a judicialização do assunto, para se evitar a prescrição. A solução poderia ser aguardar o término da relação contratual, para, só então, haver a contagem do prazo prescricional. Mas, na mesma toada, haveria casos em que o prazo ultrapassaria os dez anos da prescrição como regra geral, trazendo iguais inconvenientes de segurança jurídica.
Como se vê, embora o acórdão da Terceira Turma do STJ tenha privilegiado o tratamento uniforme do prazo prescricional das pretensões de reparação civil, reconhecendo que o prazo de três anos aplica-se indistintamente às relações contratuais ou não, excetuadas apenas as disposições especiais, ainda permanecem controvérsias doutrinárias sobre o tema, sugerindo a superação do precedente, além de questões voltadas à fixação do termo inicial da prescrição.
Acesse a íntegra da decisão disponível aqui.
Gabrielle Aleluia
Advogada da equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gustavo Caires
Estagiário da equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 206. Prescreve:
§ 3º Em três anos:
V - a pretensão de reparação civil;
(2) Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
(3) RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/1973. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO FUNDADA EM RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL. PRAZO TRIENAL. UNIFICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA A REPARAÇÃO CIVIL ADVINDA DE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL. TERMO INICIAL. PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS DECORRENTES DO MESMO FATO GERADOR: RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO. DATA CONSIDERADA PARA FINS DE CONTAGEM DO LAPSO PRESCRICIONAL TRIENAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. Decidida integralmente a lide posta em juízo, com expressa e coerente indicação dos fundamentos em que se firmou a formação do livre convencimento motivado, não se cogita violação do art. 535 do CPC/1973, ainda que rejeitados os embargos de declaração opostos. 2. O termo "reparação civil", constante do art. 206, § 3º, V, do CC/2002, deve ser interpretado de maneira ampla, alcançando tanto a responsabilidade contratual (arts. 389 a 405) como a extracontratual (arts. 927 a 954), ainda que decorrente de dano exclusivamente moral (art. 186, parte final), e o abuso de direito (art. 187). Assim, a prescrição das pretensões dessa natureza originadas sob a égide do novo paradigma do Código Civil de 2002 deve observar o prazo comum de três anos. Ficam ressalvadas as pretensões cujos prazos prescricionais estão estabelecidos em disposições legais especiais. 3. Na V Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, realizada em novembro de 2011, foi editado o Enunciado n. 419, segundo o qual "o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual". 4. Decorrendo todos os pedidos indenizatórios formulados na petição inicial da rescisão unilateral do contrato celebrado entre as partes, é da data desta rescisão que deve ser iniciada a contagem do prazo prescricional trienal. 5. Recurso especial improvido.
(4) REsp 822.914/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. j. em 01.06.2006.
(5) Enunciado n. 419 - "o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual".
(6) MARTINS-COSTA, Judtih e ZANETTI, Cristiano de Sousa. Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? (parte 4). Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-mai-29/direito-civil-atual-prazo-prescricional-responsabilidade-contratual-parte. Acesso em 21.08.17.
(7) MARTINS-COSTA, Judtih... Ob. Cit.
(8) MARTINS-COSTA, Judtih... Ob. Cit.