O processo de relicitaçação como técnica alternativa ao processo de caducidade
Maria Tereza Fonseca Dias e Bruna Rodrigues Colombarolli
Dentre as inovações trazidas pela Lei nº 13.448/2017, destaca-se a relicitação, cuja aplicação restringe-se aos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário. Trata-se de instituto sui generis, uma vez que combina técnica amigável de extinção de contrato anteriormente firmado para atuação nesses setores, com a celebração de novo instrumento contratual, mediante novo procedimento de licitação.
Verificada a superveniente incapacidade de o contratante adimplir as obrigações originárias do contrato, ao invés da deflagração da extinção contratual pela via da caducidade, poder público e contratado extinguem o contrato administrativo em comum acordo. Paralelamente, o poder público promove nova licitação, visando firmar nova avença, com contratado diverso e em novas condições contratuais. Daí a denominação relicitação.
Nos moldes delineados pela Lei nº 13.448/2017, o processo de relicitação desdobra-se em três etapas principais: (a) qualificação do empreendimento público no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) a ser relicitado; (b) celebração do distrato e, (c) promoção do novo certame. As duas primeiras etapas estão voltadas para a extinção do contrato de concessão primitivo e a terceira relaciona-se com a adoção de medidas para celebração do novo contrato.
A etapa de qualificação é deflagrada por meio da apresentação de pedido formal do contratado primitivo ao poder público requerendo a adesão ao programa de relicitação, tendo em vista a impossibilidade de continuar a honrar com as obrigações contratuais. No pedido de adesão deve constar expressamente: (a) justificativas e elementos técnicos que demonstrem a necessidade e a conveniência da adoção do processo de relicitação, com as eventuais propostas de solução para as questões enfrentadas; (b) renúncia ao prazo para corrigir eventuais falhas e transgressões e para o enquadramento previsto no §3º, do art. 38, da Lei nº 8.987/1995, caso seja posteriormente instaurado ou retomado o processo de caducidade; (c) declaração formal quanto à intenção de aderir, de maneira irrevogável e irretratável, ao processo de relicitação do objeto do contrato; (d) renúncia expressa quanto à participação no novo certame ou no futuro contrato de parceria relicitado; (e) informações necessárias à realização do processo de relicitação, em especial as demonstrações relacionadas (i) aos investimentos em bens reversíveis vinculados ao empreendimento e aos eventuais instrumentos de financiamento utilizados no contrato, bem como (ii) aos contratos em vigor de cessão de uso de áreas para fins comerciais e de prestação de serviços, nos espaços sob a titularidade do atual contratado.
O pedido de adesão ao programa de relicitação é submetido à avaliação pelo poder público, cuja decisão deve ponderar a necessidade, a pertinência e a razoabilidade da instauração do processo de relicitação do objeto do contrato, à luz de aspectos operacionais, econômico-financeiros e da continuidade dos serviços envolvidos. Nesses termos, pode-se inferir que, em que pese a natureza discricionária da decisão, o poder público encontra-se vinculado à apreciação de tais aspectos para fins de deferimento ou não do pedido de qualificação.
Uma vez deferido o pedido, o objeto do contrato passa a estar qualificado, isto é, apto a ser relicitado. A etapa da qualificação tem como efeito imediato promover o sobrestamento das medidas destinadas à promoção da instauração ou do prosseguimento dos processos administrativos de caducidade eventualmente instaurados.
Superada a etapa da qualificação, passa-se à etapa de pactuação do distrato por meio da celebração de termo aditivo ao contrato primitivo. São cláusulas obrigatórias do termo aditivo: (a) a aderência irrevogável e irretratável do contratado à relicitação do empreendimento e à posterior extinção amigável do ajuste originário; (b) a suspensão das obrigações de investimento vincendas a partir da celebração do termo aditivo e as condições mínimas em que os serviços deverão continuar sendo prestados pelo atual contratado até a assinatura do novo contrato de parceria, garantindo-se, em qualquer caso, a continuidade e a segurança dos serviços essenciais relacionados ao empreendimento; (c) o compromisso arbitral entre as partes com previsão de submissão, à arbitragem ou a outro mecanismo privado de resolução de conflitos, das questões que envolvam o cálculo das indenizações.
Facultativamente, o termo aditivo pode prever que eventuais indenizações devidas ao contratado pelos investimentos em bens reversíveis e não amortizados ou depreciados sejam pagas pelo novo contratado, nos termos e limites do edital de relicitação. O termo aditivo também pode prever o pagamento de tais valores diretamente aos financiadores do contratado primitivo.
Importante destacar que, da indenização eventualmente devida ao particular pelos investimentos realizados em bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, devem ser deduzidos os valores concernentes às multas administrativas e demais somas de natureza não tributária devidas pelo contratado primitivo ao poder público. Aliás, do valor da indenização, deve ainda ser decotada a importância relativa à outorga originalmente ofertada.
Vale destacar, desde já, que a legislação qualifica o pagamento da indenização do contratado primitivo como condição da celebração do novo contrato administrativo.
Paralelamente, cabe ao poder público desenvolver estudo técnico que deve subsidiar as condições de celebração do novo ajuste. No referido estudo deve constar: (a) cronograma de investimento, (b) estimativas de custos e despesas operacionais, (c) estimativas de demanda, (d) modelagem econômico-finaceira, (e) diretrizes ambientais, quando exigíveis, (f) considerações sobre aspectos jurídicos e regulatórios, e (g) levantamento das indenizações devidas ao contratado primitivo.
Uma vez concluído, o estudo técnico é submetido à consulta pública, que deve ser objeto de ampla publicidade na imprensa oficial e na internet, para que os interessados apresentem sugestões, no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias. Na sequência, o estudo técnico é encaminhado ao Tribunal de Contas da União.
Após análise do estudo técnico pelo órgão de controle, é deflagrado o procedimento licitatório para seleção do novo parceiro.
Estão impedidos de participar do novo certame: (a) o contratado ou a Sociedade de Propósito Específico (SPE) executoras do contrato originário; e (b) os acionistas da SPE responsável pela execução do contrato primitivo, que sejam titulares, no mínimo, de 20% (vinte por cento) do capital votante em qualquer momento anterior à instauração do processo de relicitação. Tais vedações alcançam a participação das entidades mencionadas: (1) em consórcios constituídos para participar da relicitação; (2) no capital social de empresa participante da relicitação; e (3) na nova SPE constituída para executar o empreendimento relicitado.
No caso de não comparecimento de interessados no novo certame, o contratado primitivo tem o dever de dar continuidade à adequada prestação do serviço público, estando suspensas as obrigações de investimento vincendas a partir da celebração do termo aditivo. Se persistir o desinteresse ou o certame não for concluído no prazo de 24 (vinte e quatro) meses contado da data da qualificação do objeto da relicitação no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), o poder público deve adotar as medidas contratuais e legais pertinentes, revogando o sobrestamento das medidas destinadas a instaurar ou a dar seguimento a processo de caducidade anteriormente instaurado. A legislação permite que o referido prazo seja prorrogado, justificadamente, mediante deliberação do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (CPPI).
O processo de relicitação é concluído com a identificação da proposta mais vantajosa. Na sequência, passa-se à formalização do contrato administrativo cuja celebração está condicionada ao prévio pagamento da indenização eventualmente devida ao contratado primitivo.
Da análise do devido processo instituído pela Lei nº 13.448/2017, verifica-se que o instituto tem como fundamentos precípuos os princípios da consensualidade administrativa e da continuidade dos serviços públicos.
A relicitação confirma a máxima de que a Administração Pública deve privilegiar as decisões consensuais em detrimento de atuação impositiva e unilateral, para assegurar maior legitimidade e prevenir litígios. Até a consagração do instituto da relicitação, diante da identificação de descumprimento contratual pelo concessionário de serviços público, caberia à Administração Pública unicamente a instauração de processo administrativo para fins de decretação da caducidade do contrato. A relicitação surge como processo alternativo à caducidade, no qual a extinção do contrato não é imposição administrativa unilateral, mas resultado do consenso entre as partes.
A relicitação também tende a assegurar a continuidade das atividades administrativas. Tal qual sucede nas corridas com bastões, o contratante primitivo é sub-rogado pelo novo, sem solução de continuidade da prestação dos serviços públicos.
Nesse clima, verifica-se que a relicitação surge como instituto alinhado à promoção da segurança jurídica no ambiente da contratualidade pública, por meio da consagração de técnicas consensuais e preventivas de conflitos como alternativas ao emprego de técnicas impositivas e unilaterais, como o procedimento de caducidade.
Maria Tereza Fonseca Dias
Consultora da área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Bruna Rodrigues Colombarolli
Advogada da área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados