O recente caso da Apple, as Class Actions e o Novo CPC
Gabrielle Aleluia e Leonardo Wykrota
Na última semana, a Apple foi acusada de anunciar seus Iphones nos EUA com a divulgação de espaço para armazenar arquivos maior do que o efetivamente apresentado pelos aparelhos. A acusação se sustenta na alegação de que o novo iOS 8 ocuparia 3 GB da capacidade de armazenamento, o equivalente a 19% do espaço de 16 GB que alguns aparelhos possuem, por exemplo. Ou seja, para funcionar, o Iphone já consumiria 20% de seu espaço livre anunciado (1). Por conta disso, dois consumidores de Miami moveram uma ação na corte Federal da Califórnia, com pedido de conversão em class action e reparação por danos em U$ 5 milhões.
As class actions são ações coletivas próprias dos norte-americanos, que agrupam e discutem interesses individuais e homogêneos decorrentes de uma origem comum – normalmente um evento que atingiu várias pessoas, em favor das quais se exigirá a reparação. A demanda é frequentemente patrocinada por grandes escritórios de advocacia e torna-se uma espécie de “negócio”: os escritórios investem na causa, financiando os custos do processo (quase sempre enormes), em busca de honorários milionários (2). É possível, também, negociar esses direitos “vendendo” (cedendo) a ação para escritórios maiores.
No Brasil, existe uma figura equivalente às class actions. São as chamadas ações civis públicas, reguladas pela Lei n. 7.347/85 e pelo Código de Defesa do Consumidor, principal ferramenta processual na tutela dos interesses coletivos. Embora sejam instrumentos semelhantes às class actions, por permitir a reunião de interesses coletivos em um único processo, sob a condução de um legitimado, as ações coletivas brasileiras não comportam a negociação que existe no modelo norte-americano.(3)
Além disso, nas class actions, não há grande restrição aos legitimados que, como visto, são os escritórios de advocacia que iniciaram o patrocínio da causa. Em alguns casos, eles literalmente “compram a briga” de seus clientes, que pode começar como individual e “coletivizar-se” com relativa facilidade (4). Já, no Brasil, além de se trabalhar com um rol restrito de legitimados (5), dentre os quais se destaca a figura do Ministério Público (titular, na generalidade dos casos, da ação coletiva), a coletivização de demandas particulares é pouco usual (6). Resulta, no mais das vezes, de uma fase pré-processual, na qual o Ministério Público instaura inquérito civil e apura uma pluralidade de interesses em jogo ou, então, da iniciativa daqueles que, livremente, optaram por suspender a demanda individual e aguardar o resultado da demanda coletiva que verse sobre a mesma matéria (7). Mesmo assim, a demanda coletiva não obsta a propositura ou o prosseguimento da demanda individual.
Esse cenário, entretanto, pode mudar, caso seja sancionado o Novo Código de Processo Civil, recentemente aprovado pelo Senado (PLS n.166/2010). É que, não havendo veto, a nova lei permitirá a coletivização de demandas individuais por meio do chamado “incidente de resolução das demandas repetitivas”. Trata-se de uma nova forma de coletivizar ações individuais que tenham “potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes” (art. 930, PLS 166/10).
Quem instaura o incidente é o Presidente do Tribunal competente para julgar o caso, a pedido do juiz, do relator, de qualquer uma das partes, da Defensoria ou do Ministério Público (art. 307, III, PLS 166/10), tudo na expectativa de se obter ganho de eficiência com um julgamento que sirva de parâmetro para outras ações versando sobre o mesmo tema (8). No caso da Apple, por exemplo, a possibilidade de reflexo para um universo grande de consumidores justificaria a coletivização.
Conquanto tenha sido pensada para aumentar a eficiência no julgamento de demandas repetitivas, a iniciativa não está isenta de críticas. Uma delas chama a atenção para a situação do autor da ação convertida em coletiva, que não poderia optar pelo prosseguimento de seu caso individualmente. Seria, assim, forçosa a condição de litisconsorte de um legitimado coletivo, com duvidosa eficiência em comparação ao prosseguimento do processo de forma individual.(9)
Todavia, a despeito das críticas e elogios que o polêmico instrumento processual sofre, acreditamos que só saberemos com exatidão o que ele tem de bom e de ruim (eficiência? celeridade? segurança jurídica?) depois de algum tempo de maturação na prática. Enquanto isso, cabe a nós aguardar (ansiosos) a sanção presidencial do Novo Código de Processo Civil...
Gabrielle Aleluia
Advogada da equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
Leonardo Wykrota
Sócio responsável pela equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
(1) A notícia foi veiculada no Migalhas Internacional. Confira a íntegra da notícia: http://www.migalhas.com/TopStories/64,MI213451,61044-Apple+sued+because+iPhone+isnt+really+16+GB
(2) O filme de Steven Zaillian, “A Qualquer Preço” (1998), estrelado por John Travolta e Robert Duvall, permite uma compreensão razoável de como esse financiamento acontece.
(3) No Brasil esse tipo de arranjo é vedado pelo Código de Ética e Disciplina da OAB, que proíbe a mercancia no âmbito da advocacia.
(4) Nesse sentido, bastaria a demonstração de que seriam afetados diretamente os interesses de várias pessoas. Ainda, assim, o viés dominante é patrimonialista e voltado aos interesses dos particulares, esperando-se que, ao final, haja uma grande indenização capaz de reparar (generosamente) o dano coletivo experimentado e evitar que outros danos desse tipo ocorram, pelo medo de que haja outra expressiva condenação.
(5) O art. 5º da Lei 7.347/85 e o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 82, estabelecem que os legitimados para propor ações coletivas são o Ministério Público, a Defensoria Pública, os entes federados, as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta e as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre os seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos do consumidor.
(6) O viés dominante só se assemelharia ao modelo norte-americano no caso dos chamados “interesses individuais homogêneos”. Mas nosso modelo de ação coletiva extrapola os interesses individuais, permitindo a organização de interesses difusos e coletivos (stricto senso).
(7) Cf. a respeito o Art. 104 do Código de Defesa do Consumidor: “As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes, a que aludem os incisos II e III do artigo anterior, não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva”.
(8) Nas palavras de Teresa Arruda Alvim Wambier (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre o Projeto de Lei n. 166/2010, para um novo Código de Processo Civil. In: MOREIRA, Alberto Caminã; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSHI, Gilberto Gomes (Coords.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva. Estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. Cap. 54 p. 724-727), o incidente possui duas finalidades principais. A primeira diz respeito à concretização dos “princípios da legalidade e da isonomia, interpretados e compreendidos em conjunto”. A segunda seria “diminuir a carga de trabalho dos tribunais, o que por si só, já é capaz de gerar processos mais rápidos”.
(9) Pode-se responder à crítica entendendo que o interesse individual deveria ceder ao interesse coletivo no caso. Ou então, como entendem alguns, que a conversão partiria da premissa de que a demanda individual coletivizada seria, em verdade, “pseudoindividual” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo coletivo. Volume único. São Paulo: Método, 2013, p. 66-67) e que, portanto, deveria assumir a forma coletiva, independentemente da vontade do Autor.