Considerações sobre a possibilidade jurídica de dissolução parcial de sociedade anônima fechada
Guilherme Veríssimo e Marcus Drumond
No direito brasileiro, a sociedade por ações, também denominada “sociedade anônima” ou “companhia”, é regulada pela Lei n. 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) e pelas alterações introduzidas a esta pelas Leis n. 9.457/1997 e n. 10.303/2001. O art. 4° da Lei das S.A. se refere à possibilidade da sociedade anônima ser aberta ou fechada conforme os valores mobiliários de sua emissão (ações que compõem ou virão a compor parte do capital social) estejam ou não admitidos à negociação no mercado de valores mobiliários (1).
Além dessa distinção normativa específica das sociedades anônimas, são vários os critérios trabalhados pela doutrina empresarial para caracterizar e classificar as sociedades empresárias. Sem se adentrar a fundo no assunto, importa aqui destacar, considerando-se o foco do presente artigo, o critério que possibilita analisar as sociedades, independente do tipo societário sobre as quais se revestem, como sendo de pessoas (intuitu personae) ou de capitais (intuitu pecuniae).
De acordo com Celso Barbi Filho, nas sociedades de pessoas “há especial relevo para a identidade da pessoa do sócio”, de modo que “a gênese volitiva orienta-se pelo desejo de estar associada à determinada pessoa e não a qualquer outra”. Nas sociedades de capitais, diferentemente, “a identidade do sócio é irrelevante para o surgimento ou existência da associação, importando apenas a contribuição de cada um para a formação do capital” (2). Daí é que se afirma que as sociedades anônimas em geral constituem-se por intuitu pecuniae, diferentemente do que ocorre nas sociedades limitadas, por exemplo, que se fundam pelo intuitu personae dos sócios.
Apesar da Lei das S.A. dispor expressamente acerca das hipóteses de dissolução das sociedades anônimas, nota-se, por parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras, divergência de entendimento quanto à possibilidade jurídica de aplicação da dissolução parcial - que era até algum tempo restrita às sociedades de pessoas, a teor das disposições contidas na Lei n. 10.406/2002 (“Código Civil”), às sociedades anônimas fechadas.
Nesse sentido, faz-se necessário destacar a contextualização do conceito de dissolução parcial frente às sociedades empresárias.
Para Modesto Carvalhosa, “a dissolução parcial nada mais é do que a resilição do contrato de sociedade com relação a um ou mais sócios, em razão da verificação de causas pessoais capazes de provocar a extinção do vínculo contratual societário que o vincula ao corpo social”. Sendo, ainda na concepção do autor, o fundamento da dissolução parcial “a necessidade de preservação da empresa, razão pela qual a sociedade permanece a despeito do desligamento de um de seus sócios.” (3).
Ainda sobre o referido instituto é relevante pontuar que há, especialmente no cerco doutrinário, amplo debate sobre a propriedade do termo, que, para alguns autores – como é o caso de Márcio Tadeu Guimarães Nunes – o trata como expressão “atécnica”, por entender não ser o instituto capaz de delinear exatamente os efeitos que se operam na sociedade em virtude do desligamento do sócio retirante (4).
Voltando à possibilidade jurídica da dissolução parcial de sociedades anônimas fechadas, tem-se que no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) há tanto julgados mais antigos (5), que dão tratamento legalista à hipótese, inadmitindo a aplicação do instituto às sociedades em menção - como há também julgados, estes nos quais se consolida a posição mais recente do STJ, em que se têm aplicado subsidiariamente o Código Civil, por omissão da Lei das S.A., aos casos concretos.
Por meio desses julgados a jurisprudência então passou a admitir, levando em conta peculiaridades próprias da realidade econômica brasileira, a dissolução parcial de sociedades anônimas fechadas, uma vez que, pela ausência de circulação de ações no mercado, estas passariam a ostentar a condição de sociedades fundadas primordialmente pelo intuitu personae dos sócios, situações nas quais, por vezes, se chega até mesmo a atribuir à relação societária caráter familiar, tamanho é o peso dos aspectos subjetivos da figura dos sócios em tais sociedades.
Nesses últimos casos, os entendimentos firmados têm como base em especial o voto do Ministro Castro Filho, proferido na ocasião de julgamento do EREsp n. 111.294/PR, de sua relatoria, por meio da qual ele explicou que “o instituto da dissolução parcial erigiu-se baseado nas sociedades contratuais e personalistas, como alternativa à dissolução total e, portanto, como medida mais consentânea ao princípio da preservação da sociedade e sua função social. Contudo, a complexa realidade das relações negociais hodiernas potencializa a extensão do referido instituto às sociedades "circunstancialmente" anônimas, ou seja, àquelas que, em virtude de cláusulas estatutárias restritivas à livre circulação das ações, ostentam caráter familiar ou fechado, onde as qualidades pessoais dos sócios adquirem relevância para o desenvolvimento das atividades sociais ("affectio societatis").” (6).
Na mesma linha foi como decidiu o Ministro Luís Felipe Salomão no julgamento do REsp n. 917.531/RS que, levando em conta o precedente constituído acima, afirmou em seu voto que, uma vez “caracterizada a sociedade anônima como fechada e personalista, o que tem o condão de propiciar a sua dissolução parcial – fenômeno até recentemente vinculado às sociedades de pessoas -, é de se entender também pela possibilidade de aplicação das regras atinentes à exclusão de sócios das sociedades regidas pelo Código Civil, máxime diante da previsão contida no art. 1.089 do CC: "A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código." (7).
Mesmo depois dos precedentes acima mencionados, há, por parte da doutrina, ressalvas quanto ao entendimento do STJ sobre a matéria e, do mesmo modo, podem-se observar decisões dos tribunais estaduais em sentido contrário (8), nas quais, considerando as peculiaridades do caso concreto, manteve-se o caráter generalístico do intuito pecuniae da sociedade anônima fechada como preponderante para o afastamento da possibilidade da dissolução parcial.
Como se vê, o tema é amplo e requer profundidade de análise não permitida pela finalidade do presente artigo, que é a de chamar atenção para sua atual relevância no direito societário, com destaque para a jurisprudência que vem sendo formada, principalmente, no STJ.
A equipe de Consultoria Societária do VLF fica à disposição para maiores informações sobre o assunto.
Guilherme Veríssimo
Advogado da equipe de Consultoria Societária do VLF
Marcus Drumond
Estagiário da equipe de Consultoria Societária do VLF
(1) Art. 4º Para os efeitos desta Lei, a companhia é aberta ou fechada conforme os valores mobiliários de sua emissão estejam ou não admitidos à negociação no mercado de valores mobiliários. Disponível em http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L6404consol.htm. Acessado em 18/02/2018.
(2) BARBI FILHO, Celso. Dissolução parcial de sociedades limitadas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 58.
(3) CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 4, Tomo I. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 28.
(4) NUNES, Marcio Tadeu Guimarães. Dissolução parcial de sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 39.
(5) REsp n°. 419.174/SP de relatoria do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 15/08/2002 e publicado no DJ em 28/10/2002. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200200284189&dt_publicacao=28/10/2002. Acessado em 19/02/2018.
(6) Íntegra do acórdão disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200201005006&dt_publicacao=10/09/2007. Acessado em 19/02/2018.
(7) Íntegra do acórdão disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200700073925&dt_publicacao=01/02/2012. Acessado em 19/02/2018.
(8) Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível n°. 1.0024.07.480500-3/001 de relatoria da Desembargadora Hilda Teixeira da Costa, 14ª Câmara Cível, julgado em 10/12/2009 e publicado em 27/01/2010.