Frete mínimo: o controle estatal de preços e a inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 832/2018
Bruna R. Colombarolli, Gabrielle Aleluia e Gustavo Caires
Entre as medidas lançadas pelo Governo Federal para conter a greve dos transportadores de carga, destaca-se a Medida Provisória n. 832/2018 (1) que instituiu, em âmbito nacional, o dever de observância de preços mínimos para contratação do serviço rodoviário de transporte de cargas. O descumprimento dos preços mínimos, fixados pela ANTT, sujeita o infrator ao dever de indenizar o transportador em valor equivalente ao dobro do que seria devido, descontando-se o valor já pago.
Caso convertida em lei, a Medida Provisória acaba por instituir um regime de controle estatal permanente dos preços dos serviços de transporte rodoviário de cargas. Contudo, existem dúvidas acerca da possibilidade de adoção, pelo Estado brasileiro, das chamadas técnicas de controle de preços pelo Estado (2).
A Presidência da República e o Ministério da Fazenda sustentam que, a despeito da consagração constitucional da livre iniciativa, a tutela de outros bens jurídicos justifica a manipulação pelo Estado dos preços de produtos e serviços.
Por outro lado, importantes segmentos da economia e o próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica entendem que a substituição do mercado pelo Estado no processo de fixação de preços de bens e serviços constitui medida de planificação econômica compulsória, típica do modelo de dirigismo econômico, que não encontra amparo no atual marco constitucional.
A avaliação da compatibilidade da Medida Provisória n. 832/2018 com o Texto Constitucional é objeto de diversos incidentes de controle de constitucionalidade, bem como das Ações Diretas de Constitucionalidade n. 5956 e 5959, ajuizadas respectivamente pela Associação do Transporte Rodoviário de Carga do Brasil (“ATR”) e pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (“ATR”), ambas sujeitas à relatoria do Ministro Luiz Fux.
Enquanto, o Supremo Tribunal Federal não se manifesta, é oportuno verificar se o controle estatal de preços aparece entre as hipóteses de intervenção do Estado no domínio econômico, consagradas pela Constituição de 1988.
Ao dispor sobre a ordem econômica, Texto Constitucional estabeleceu como princípios estruturantes a livre iniciativa e o valor do trabalho humano, consagrou, expressamente, o sistema capitalista e disciplinou as formas de intervenção do Estado no domínio econômico.
A consagração da livre iniciativa implica reconhecer a autonomia e a primazia empreendedora dos indivíduos na conformação da atividade econômica, o que envolve o direito subjetivo de fixar preços (art. 170, IV)(3).
Ademais, de forma inquestionável, a Constituição de 1988 retirou do Estado o papel de protagonista no domínio econômico, limitando sua atuação nas hipóteses delimitadas pelos arts. 173, 174 e 177. Por consequência, é notório que a Constituição de 1988 rechaça a chamada economia estatizada ou o dirigismo econômico, em que o Estado, em substituição da livre iniciativa, atua como agente centralizador da ordem econômica, definindo os preços dos bens e serviços e impondo metas a setor privado.
Além disso, visando tutelar a livre iniciativa, a atual Constituição rompeu com a lógica dos modelos pretéritos que atribuíam ao legislador ordinário a competência para instituir exceções ao princípio da livre iniciativa. Portanto, tem-se que, somente, por meio de norma constitucional a livre iniciativa pode ser excepcionada (6). Desse modo, devido ao seu caráter excepcional, a intervenção (direta ou indireta) do Estado no domínio econômico fica limitada às hipóteses prescritas pelos arts. 173, 174 e 177 do Texto Constitucional.
A atuação direta – situação em que Estado assume o papel de agente econômico -, fica restrita aos imperativos de segurança nacional, relevante interesse ou para fins de exploração de determinadas atividades em regime de monopólio (arts. 173 e 177). Na atuação indireta, o Estado atua como agente normativo e regulador, por meio de rol exaustivo, os instrumentos definidos pelo art. 174 do Texto Constitucional: fiscalização, incentivo e planejamento (4).
A fiscalização manifesta-se por meio do exercício do poder de polícia dos órgãos e entidades administrativas. O incentivo ou fomento congrega o conjunto de benefícios, subsídios, auxílios e empréstimos, concedidos pelo Estado para estimular determinado setor ou atividade. O planejamento congrega ações e programas voltados para racionalização da economia, por meio da definição de metas e fins econômicos, que devem ser vinculante para o setor público e meramente indicativos para o setor privado. Desse modo, a título de planejar, o Estado não pode impor aos particulares o atendimento cogente das diretrizes pretendidas e tampouco impor a prática de preços para comercializar bens e serviços (5).
Fato é que o Texto Constitucional não atribuiu ao Estado o papel de agente central ou controlador da economia, e nunca lhe outorgou a especialíssima e sensível prerrogativa de definir os preços dos bens e dos serviços. Nesse quadro, tem-se que não é outorgado ao legislador infraconstitucional estabelecer o controle estatal de preços de bens e serviços. Por consequência, a compatibilização da Medida Provisória n. 832/2018 com o Texto Constitucional pressupõe a supressão do caráter vinculante e impositivo dos preços mínimos estipulados pela ANTT.
Finalmente, é oportuno registrar que, em ensaio sobre o tema, o Ministro Luís Roberto Barroso considera que, em situações excepcionalíssimas, o Estado brasileiro poderia realizar o controle de preços e serviços, a despeito de reconhecer a inexistência de previsão constitucional e a compatibilidade da medida com os sistemas autoritários caracterizados pelo dirigismo econômico. O autor defende que em situações de anormalidade, por tempo determinado, e, desde que inexista outra medida capaz de tutelar a interesse público (princípio da razoabilidade), o Estado poderia realizar o controle de preços.
Ocorre que, mesmo à luz de tal entendimento, a inconstitucionalidade da Medida Provisória remanesce. Isso porque o ato normativo institui regime permanente de controle dos preços dos serviços rodoviários de transporte terrestre. Além disso, cabe ponderar que a Medida Provisória n. 832/2018 teve como escopo a tutela exclusiva dos interesses da classe dos transportadores, ignorando os direitos subjetivos e interesses de outros atores do setor produtivo (indústria e produtores rurais) e dos consumidores. Desse modo, é evidente que a Medida Provisória não constituiu instrumento o único adequado e necessário para tutelar os interesses da coletividade.
Impactos da fixação do frete mínimo
Além de todas as questões relativas à constitucionalidade, cabe pontuar que os efeitos econômicos da medida adotada também põe em xeque da MP n. 832/2018.
Não se trata de negar a gravidade da situação gerada pela paralisação em todo o país. A título de exemplo, conforme editorial do Jornal Valor Econômico (7), as exportações de automóveis caíram 17%, chegando a 46% em relação aos produtos manufaturados. Além disso, os impactos negativos da greve devem gerar uma queda de 20% na fabricação de veículos em comparação com o mês de maio do ano passado.
Entretanto, a medida adotada pelo governo, que já está sendo aplicada por meio da Resolução 5.820 da ANTT(8), aumentou em 40% os preços mínimos praticados no mercado de fretes rodoviários. Tamanho aumento, combinado com a total ausência de planejamento para sua aplicação, e a ausência de diálogo sobre a adequação da medida, pode gerar prejuízos irreparáveis aos tomadores de tal serviço.
As dúvidas quanto aos efeitos da MP já paralisaram, por exemplo, o mercado de grãos(9), e tem gerado críticas de mais de 40 associações do setor, dentre elas a Associação Nacional dos Exploradores de Cereais (ANEC), que está tentando impedir, juntamente com a bancada ruralista, que a MP vire lei no congresso. No setor produtivo, as reclamações são generalizadas e há uma movimentação dos empresários junto ao ministério dos transportes, a ANTT e a ANUT para discussão do assunto.
Mais esclarecimentos sobre o tema podem ser obtidos com a equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados.
Bruna R. Colombarolli
Sócia da área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Gabrielle Aleluia
Advogada da equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gustavo Caires
Estagiário da equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Mpv/mpv832.htm>.
(2) O controle de preços em sentido amplo pelo Estado pode ser desenvolvido por meio de três técnicas: (i) tabelamento de preços; (ii) congelamento de preços e (iii) controle de preços em sentido estrito. O tabelamento consiste no bloqueio de preços a um valor máximo. O congelamento consiste na manutenção dos preços contratados. Por fim, o controle em sentido estrito resulta no acompanhamento e limitação dos preços.
(3) FERRAZ JÚNIOR, Tércio. Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais. Revista de Direito Público, nº 91, RT São Paulo: 1989, pp. 76/86.
(4) BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à autuação estatal no controle de preços. Revista de Direito Administrativo. 226. Rio de Janeiro, 2001 (out/dez) p. 190.
(5) Ao comentar o art. 174 do Texto Constitucional, Diogo de Figueiredo Moreira Neto dispõe que: Este rol constitucional de instrumentos de intervenção regulatória é exaustivo: não admite ampliação pela via interpretativa, uma vez que representam, cada um deles, uma exceção ao princípio da livre iniciativa (art. 1º IV, e art. 170, caput) e mais, precisamente, ao princípio da livre concorrência (art. 170, IV). Qualquer outra modalidade interventiva, admissível genericamente no art. 163 da antiga Carta [...] perde, na vigente, seu suporte constitucional.
(6) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 633.
(7) Valor Eonoômico. Greve dos caminhoneiros impacta balança comercial. Disponível em: <http://www.valor.com.br/opiniao/5572831/greve-dos-caminhoneiros-impacta-balanca-comercial> Acesso em 210/06/2018.
(8) Disponível em: <http://www.antt.gov.br/backend/galeria/arquivos/RESOLUCAO_ANTT_n_5820_de_30_de_maio_de_2018_.pdf>. Acesso em 18/06/2018.
(9) Valor Econômico. Dúvidas sobre MP dos fretes paralisam mercado de grãos. Disponível em: <Disponível em: <http://www.valor.com.br/agro/5572837/duvidas-sobre-mp-dos-fretes-paralisam-mercado-de-graos> Acesso em 20/06/2018.