A exequibilidade de contratos eletrônicos segundo o STJ
Marina Leal e Lucas Sávio Oliveira
Em recente decisão no Recurso Especial de n. 1.495.920/DF (1), o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) admitiu a possibilidade de execução de contrato eletrônico, firmado com o uso de certificados digitais (2), que não foi assinado por duas testemunhas.
A assinatura por duas testemunhas é, de acordo com a lei, como se verá, um dos requisitos para que um contrato seja reconhecido como título executivo extrajudicial. Em outras palavras, cumprida a forma, em caso de litígio, ao invés de ter que passar por uma fase de conhecimento em que seria necessário provar a existência do contrato, a parte que se ver prejudicada poderá executar o contrato diretamente, o que dará celeridade para resolução da contenda.
O Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, divergindo dos juízos de 1º e 2º grau, que extinguiram o processo sem resolução do mérito, entendeu que o contrato eletrônico, assinado digitalmente, representaria uma obrigação líquida, certa e exigível. Segundo ele, as entidades certificadoras que viabilizaram a assinatura do contrato serviriam de testemunho para comprovar sua higidez. Recordou, a propósito, que a assinatura das testemunhas tem natureza instrumental e que, pela própria jurisprudência do STJ, em casos excepcionais já foi reconhecida a possibilidade de comprovação do negócio de outras formas.
Esse entendimento da 3ª Turma do STJ é o primeiro sobre o assunto, que ganhará cada vez mais relevância a partir do uso recorrente de contratos firmados digitalmente.
A decisão, contudo, poderia ser passível de críticas.
Ocorre que os títulos executivos extrajudiciais devem ser previstos em lei, seguindo o princípio “nullun titulus sine lege”. O art. 784 do Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/15”) (3), que traz rol de títulos executivos extrajudiciais, exige a assinatura do devedor e de duas testemunhas para que o documento particular seja passível de execução direta. Dessa forma, o STJ fez uma intepretação extensiva para permitir a execução do contrato eletrônico, o que, no entanto, para vários doutrinadores, não pode ser feito. Conforme aduzem Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (4):
é necessário frisar que a escolha dos títulos extrajudiciais decorre de eleição do legislador. Não se cria título executivo extrajudicial a não ser por lei federal e compete apenas ao legislador escolher os documentos que serão dotados de eficácia executiva. Nem se admite a interpretação extensiva ou analógica do elenco posto no direito positivo.
Dessa forma, a princípio, pode parecer que a decisão foi equivocada ao criar novo título executivo extrajudicial, interpretando extensivamente o art. 784, III, CPC/15. No entanto, antes de se chegar a essa conclusão, dois questionamentos devem ser feitos: quais são os papeis das testemunhas e dos certificadores digitais? Um poderia, de fato, substituir o outro?
A Medida Provisória n. 2.200-2, de 2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (“ICP-Brasil”) (5), traz em seu art. 1º, que a sua função é: “garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, (...)”. Ou seja, a assinatura digital é capaz de garantir não só a validade e autenticidade da assinatura, mas do documento como um todo.
As testemunhas, de maneira similar, de acordo com a jurisprudência do STJ, têm a função de aferir a existência e validade do negócio (6), não tendo sua mera assinatura o condão de evidenciar sua ciência acerca do conteúdo do negócio (7).
Sendo assim, na realidade, ambos possuem a mesma função: assegurar a validade do instrumento firmado.
A decisão, nesse sentido, supriu lacuna na lei, que não trata de maneira expressa sobre a exequibilidade de contratos eletrônicos firmados digitalmente que, raramente, possuem a assinatura de testemunhas. O ideal, entretanto, é que haja mudança legislativa que acompanhe essa nova realidade ou que, ao menos, o precedente não venha a ser uma decisão isolada no STJ.
Marina Leal
Trainee da Equipe de Consultoria e Contratos do VLF Advogados.
Lucas Sávio Oliveira
Advogado da Equipe de Consultoria e Contratos do VLF Advogados.
(1) STJ, REsp 1495920/DF, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 15/05/2018, DJe 07/06/2018. Disponível em
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1698344&num_registro=201402953009&data=20180607&formato=PDF>. Acesso em: 18/07/2018.
(2) Entenda-se que se trata de contratos firmados mediante o uso de certificados digitais de acordo com o disposto na Medida Provisória n. 2.200-2/2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2001/2200-2.htm>. Acesso em: 18/07/2015.
(3) CPC/15. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 18/07/2015.
(4) MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil - Execução , V. III, 1ª ed. em e-book, 2013.
(5) Ver nota 2 acima.
(6) STJ, REsp 1438399/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/03/2015, DJe 05/05/2015; STJ, REsp 1453949/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 15/08/2017.
(7) STJ, REsp 1185982/PE, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/12/2010, DJe 02/02/2011.