Transporte internacional rodoviário de cargas e frete mínimo
Bruna Colombarolli, Érika Vilar e Lucas Sávio Oliveira
O Governo Federal, para conter a greve dos transportadores de carga, editou a Medida Provisória n. 832, de 2018, recentemente convertida na Lei n. 13.703(1), que institui a Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas (“Política de Fretes Mínimos” ou “Política”). Em linhas gerais, o citado ato normativo institui, em âmbito nacional, o dever de observância de preços mínimos para contratação do serviço rodoviário de cargas.
A Política de Fretes Mínimos atribui à ANTT a competência para fixação das tabelas definidoras dos preços mínimos, devendo, prioritariamente, considerar os custos do óleo diesel e dos pedágios. O descumprimento dos preços mínimos sujeita o infrator ao dever de indenizar o transportador em valor equivalente ao dobro do que seria devido, descontando-se o valor já pago.
Para disciplinar as disposições da Política de Fretes Mínimos, a ANTT editou, ainda na época da Medida Provisória, as Resoluções n. 5.820 e 5.821. Entre os vários aspectos polêmicos gerados pela edição da Política, destaca-se a sujeição dos contratos de transporte internacional rodoviário de cargas às regras instituídas pela ANTT.
De acordo com seu art. 2º, “a Política de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas tem a finalidade de promover condições mínimas para a realização de fretes no território nacional (...)”, sendo que o “transporte rodoviário de cargas, em âmbito nacional, deverá ter seu frete remunerado em patamar igual ou superior aos pisos mínimos de frete fixados com base nesta Lei”, conforme seu art. 4º.
Uma das possíveis interpretações dos dispositivos acima mencionados seria a de que qualquer serviço de transporte realizado no território brasileiro estaria sujeito à tabela de fretes mínimos, mesmo que a origem ou o destino das mercadorias seja em outro país. Trata-se, porém, de uma interpretação literal das normas que desconsidera o contexto em que o transporte internacional ocorre e, também, a legislação específica aplicável nesse caso.
O transporte rodoviário de cargas internacionais realizado no âmbito do MERCOSUL, por exemplo, é disciplinado por corpo normativo específico, estando sujeito a um regime próprio de prestação composto por normas especiais sobre contratação, licenças e autorizações, seguros, infrações administrativas e sanções.
Esse regime jurídico próprio justifica-se para facilitar o incremento das relações comerciais entre os países, no transporte de bens e pessoas, permitindo que veículos e condutores de um país circulem com segurança nos territórios dos demais e estabelecendo trâmites fronteiriços simplificados.
Na década de 90, por meio do Decreto n. 99.704, o Brasil incorporou ao nosso sistema jurídico o Acordo sobre Transporte Internacional Terrestre, entre o Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Chile, o Paraguai, o Peru e o Uruguai (“Acordo sobre Transporte Internacional” ou “Acordo”). O citado ato normativo estabelece as principais normas regulamentadoras sobre transporte internacional rodoviário de cargas no âmbito do MERCOSUL, sendo aplicável, também, às empresas de transporte autorizadas para prestar o referido serviço.
No âmbito do Acordo sobre Transporte Internacional, para ser qualificado como tal, a rota do serviço de transporte de cargas deverá compreender o território de dois ou mais países signatários. É preciso, ainda, que a empresa de transporte esteja devidamente autorizada nos termos do Acordo, devendo, a cada operação, portar formulário bilíngue próprio, o chamado Conhecimento de Transporte Internacional ou Carta de Porte Internacional (CRT).
Uma vez preenchidos tais requisitos, o serviço de transporte deve ser qualificado como internacional.
Por outro lado, cabe observar que a Política de Fretes Mínimos estabelece regras que vinculam tão-somente os fretes realizados em território nacional, conforme expressamente disposto em seu art. 2º. A Política e a Resolução ANTT nº 5.820/2018 nada dispõem sobre o dever de aplicação das regras do frete mínimo ao serviço de transporte internacional. Logo, apenas os serviços de transporte de cargas cuja rota fica restrita ao território nacional estão sujeitos à observância das regras do frete mínimo.
Nesse contexto, tem-se que ainda que o transporte internacional de cargas envolva operação transbordo (2), ele não está sujeito ao frete mínimo no trecho da rota que compreende o território nacional. Isso porque a legislação aplicável impõe que o serviço de transporte seja interpretado de formal global (origem e destino final) e de forma fragmentada por meio da decomposição de fretes internos.
Ademais, cabe ponderar que, por força do princípio da reciprocidade e da norma inscrita no art. 18 do Acordo sobre Transporte Internacional, para que as regras brasileiras do frete mínimo fossem vinculantes para o transporte internacional, envolvendo dos países do Mercosul, seria preciso que o Brasil realizasse a informação formal sobre o novo regime tarifário aos demais países signatários, antes de sua entrada em vigor (3), algo sobre o que não se tem notícia.
Fica, assim, demonstrado que, além da inconstitucionalidade que macula a Política de Fretes Mínimos, já abordada neste informativo, suas regras são inaplicáveis ao serviço de transporte internacional rodoviário de cargas em razão da existência de corpo normativo próprio para reger o referido serviço, da necessidade de o Brasil honrar os acordos internacionais celebrados e da impossibilidade de prestigiar interpretações normativas que resultem em instabilidade e insegurança jurídica, o que, ao fim e ao cabo, afeta a credibilidade da economia do nosso País.
Mais informações sobre o assunto podem ser obtidas com a equipe de direito regulatório e de consultoria internacional do VLF Advogados.
Bruna Colombarolli
Sócia Executiva da área de Direito Administrativo e Regulatório VLF Advogados
Érika Villar
Advogada da equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
Lucas Sávio Oliveira
Advogado da equipe de Consultoria Internacional do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 13.703, de 8 de agosto de 2018. Institui a Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas. Diário Oficial da União, 9 ago. 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13703.htm> Acesso em: 22 agosto 2018.
(2) Segundo, o Anexo I do Acordo sobre Transporte Internacional, transbordo é o translado de mercadorias efetuado sob controle aduaneiro de uma mesma aduana, de uma unidade de transporte a outra, ou para mesma em viagem distinta, incluindo sua descarga em terra, com objetivo de continuar até seu lugar de destino.
(3) Artigo 18. - Quando um dos países signatários adotar medidas que afetem o transporte internacional terrestre, deverá dar conhecimento delas aos outros Organismos Nacionais Competentes antes que entrem em vigor.