Pessoa jurídica como titular de mais de uma EIRELI: fim da polêmica
Guilherme Veríssimo e Pedro Ernesto Rocha
Conforme dispõe o artigo 980-A do Código Civil Brasileiro (“Código Civil”):
“a empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.”
Desde a entrada em vigor do dispositivo legal citado acima, no ano de 2012, observou-se a constituição de um altíssimo número de empresas individuais de responsabilidade limitada (“EIRELI”).
A EIRELI nada mais é do que uma pessoa jurídica de direito privado, constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital, submetida, em princípio, às mesmas normas que tratam das sociedades empresárias limitadas (2).
É sabido que o instituto da EIRELI visa, dentre outros, evitar a adoção pelos empreendedores de arranjos societários entre dois sócios, sendo um deles uma pessoa que de fato empreende, e o outro uma pessoa “figurante”, que é sócia exclusivamente para que seja possível manter uma sociedade limitada regular (com dois sócios, no mínimo) (3).
Nesse contexto, muitos dos arranjos acima descritos eram feitos entre uma sócia pessoa jurídica, e um sócio “figurante”. Por isso, em razão da suposta omissão legal, a pergunta que por muito tempo se fez é se seria viável que uma EIRELI fosse constituída por uma pessoa jurídica.
É bom registrar que o Código Civil nunca vedou ou sequer limitou a constituição de EIRELI por titular pessoa jurídica. Apesar deste fato, costumeiramente, a tentativa de constituir uma EIRELI composta por titular pessoa jurídica esbarrava em resposta negativa dos entes responsáveis pelo registro do comércio, sob o argumento de que esta modalidade era exclusivamente destinada ao titular pessoa física.
Evidentemente, tal raciocínio não pode prosperar. É que o artigo 980-A fala de “pessoas”, sem restringir às pessoas físicas ou às jurídicas. Ademais, ao tecer especificamente restrições à EIRELI constituída por pessoa física (pessoa natural) (4), o Código Civil, contrario sensu, deixa em aberto a possibilidade da EIRELI ser constituída por pessoa jurídica (porque a essas não cria nenhum tipo de restrição).
Percebendo a necessidade de pacificar – e, consequentemente, desjudicializar (5) – o tema, o Departamento de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) editou a Instrução Normativa 38/2017, formalizando que a EIRELI poderia ser constituída por pessoa jurídica (6).
Todavia, a redação truncada da Instrução Normativa 38/2017 – combinada com o disposto no §2º do artigo 980-A do Código Civil – abriu espaço para novas dúvidas, notadamente sobre a possibilidade de pessoa jurídica ser titular de mais de uma EIRELI, e sobre a possibilidade de uma EIRELI ter como titular uma pessoa física sócia de pessoa jurídica titular de EIRELI.
Como visto no Informativo VLF 47/2018 (7), por meio da Instrução Normativa 47/2018, o DREI considerou que o limite trazido no §2º do art. 980-A expressamente restringe-se às pessoas naturais, e reconheceu expressamente que uma pessoa jurídica poderá figurar em mais de uma EIRELI. Não houve vedação à constituição de EIRELI por uma pessoa física sócia de pessoa jurídica titular de outra EIRELI, logo, pode-se entender pela legalidade de tal possibilidade.
Em consonância com o entendimento expresso do DREI, os órgãos de registro do comércio assimilaram o real objetivo da lei e passaram a permitir a constituição de EIRELI por titular pessoa jurídica, sem ressalvas ou restrições.
Esse avanço tende a ser muito útil para os grupos empresariais do país, pois, em termos práticos, a possibilidade de se constituir uma ou mais de uma EIRELI tendo como titular uma pessoa jurídica pode viabilizar, de diversas formas, a otimização das estruturações e reestruturações societárias, planejamentos tributários e/ou patrimoniais.
Diante desse novo contexto fático normativo, listamos abaixo algumas das principais peculiaridades atinentes à constituição de EIRELI, qualificando-as como pontos positivos ou negativos.
PONTOS POSITIVOS
(i) Proteção do patrimônio pessoal do titular da EIRELI, desvinculando-o dos riscos inerentes ao exercício das atividades empresariais.
(ii) Desnecessidade de inserção de um segundo sócio, somente para compor ou recompor a pluralidade de sócios obrigatória às sociedades limitadas.
(iii) Possibilidade de ser constituída por pessoas físicas e jurídicas.
PONTOS NEGATIVOS
(i) O capital social deverá ser igual ou maior ao montante equivalente a 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no país, à época da constituição da EIRELI.
(ii) Se o titular da EIRELI for pessoa física (natural), esta não poderá figurar em outra empresa desta natureza jurídica.
Para mais informações, entre em contato com a equipe de consultoria societária do VLF Advogados.
Guilherme Veríssimo
Advogado da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Advogado da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Saiba mais: <https://www.jucemg.mg.gov.br/ibr/informacoes+estatisticas>. Acesso em 25/09/2018.
(2) Código Civil: “Artigo 980-A – [...] §6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.”.
(3) É frequente – e, até o advento da Lei 12.411/2011, que criou a EIRELI, era ainda mais frequente – a existência de sociedades limitadas com um sócio titular de 99,99% do capital social, e outro sócio, “laranja”, titular de 0,01%. Anteriormente à Lei 12.411/2011, tal arranjo visava, exclusivamente, viabilizar a manutenção regular de uma sociedade limitada, pois tal tipo societário exige a pluralidade de sócios, nos termos do artigo 1.033, IV do Código Civil, que dispõe: “Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: [...] IV – a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias; [...]”.
(4) Código Civil: “Artigo 980-A – [...] §2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. [...]”.
(5) TRF3, 0017439-47.2014.4.03.6100, Rel. Des. Federal Wilson Zauhy, Primeira Turma, j. 19/04/2018: DECISÃO Trata-se de mandado de segurança impetrado por AMERICAN CAP GESTORA DE VAREJO LTDA. em face do PRESIDENTE DA JUNTA COMERCIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO - JUCESP, por meio do qual alega que uma das sociedades empresárias que compunha seu quadro social optou por deixar a empresa, transferindo suas quotas sociais para a sócia remanescente - outra pessoa jurídica. Afirma que em 04 de setembro de 2014 buscou registrar na JUCESP a alteração do contrato social da impetrante com a sua transformação em EIRELI. No entanto, a JUCESP negou o registro, ao argumento de que a pessoa jurídica remanescente não poderia ser titular de EIRELI, conforme IN n. 10, Anexo V, do DREI - Item n. 1.2.11. Argumenta que o ato combatido é ilegal, na medida em que o art. 980-A do Código Civil de 2002 não procede a qualquer diferenciação entre pessoa física e pessoa jurídica como titular de EIRELI, não podendo a autoridade impetrada fazer distinção por ato infralegal. Assevera que a situação em tela afronta o princípio da livre iniciativa, insculpido pelo art. 170 da Constituição Federal de 1988. O juízo de primeiro grau deferiu o pedido liminar. [...].À fl. 231, este Relator determinou que a parte apelante se manifestasse quanto ao eventual interesse recursal no julgamento do apelo, tendo em vista a edição da Instrução Normativa n. 38 do Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI), a autorizar as pessoas jurídicas a serem titulares de EIRELI's. À fl. 234, restou certificado que a apelante, mesmo intimada, deixou de se manifestar quanto ao despacho que proferi. Neste ponto, vieram-me conclusos os autos. Decido. Ao presente recurso deve ser negado seguimento. Instada a se manifestar quanto ao interesse recursal no prosseguimento do feito, a apelante quedou-se inerte. A questão controvertida nestes autos encontra-se prejudicada pela edição da Instrução Normativa n. 38 do DREI. Desta forma, nego seguimento ao recurso de apelação interposto, com fundamento no art. 932, inc. III, do Código de Processo Civil de 2015. Intimem-se. Após as cautelas legais, baixem os autos à Vara de origem."
(6) Item 1.2: “1.2 ORIENTAÇÕES E PROCEDIMENTOS – A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI poderá ser constituída tanto por pessoa natural quanto por pessoa jurídica, nacional ou estrangeira. Do ato constitutivo da EIRELI constituída por pessoa natural deverá constar cláusula com a declaração de que o seu titular não participa de nenhuma outra empresa dessa modalidade. A constituição de EIRELI por pessoa jurídica impede a constituição de outra com os mesmos sujeitos naturais integrantes a titular, em respeito ao disposto no § 2º do art. 980-A do Código Civil.”. No primeiro manual de EIRELI publicado pelo DREI, havia previsão expressa, vedando a titularidade de EIRELI por pessoa jurídica: “1.2.11: IMPEDIMENTO PARA SER TITULAR – Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial.”
(7) Disponível em: <http://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=554>.