A progressiva relativização do princípio da inversão do ônus da prova em matéria consumerista
Izabella Cunha
Uma das inovações do Código de Processo Cível de 2015 (“CPC/15”) foi a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova pelo juiz, prevista em seu art. 373, §º1.
A função do ônus probatório é atribuir à determinada parte o encargo de provar certo fato. Caso esta não o faça, poderá não ter sua pretensão acolhida pelo julgador, uma vez que não houve a prova de suas alegações. Assim, o ônus da prova se torna, em última análise, um critério de julgamento: verificando a insuficiência de provas sobre determinado fato, o juiz decidirá contra aquele a quem foi atribuído o ônus de prova-lo. Conforme ensina o Professor Humberto Theodoro Júnior, o ônus refere-se à atividade processual de pesquisar a verdade acerca dos fatos (1).
A inovação trazida pelo art. 373, §º1, CPC/15 foi a de permitir que o juiz distribua o ônus da prova de modo diverso ao preconizado nos incisos I e II do art. 373 – que trazem a regra geral da distribuição do ônus probatório – em algumas hipóteses. São elas: (i) nos casos previstos em lei; (ii) diante de excessiva dificuldade de cumprimento do encargo; (iii) ou, ainda, em casos de maior facilidade de obtenção da prova (2).
Assim, de forma diversa do Código de Processo Civil de 1973, que se limitava a determinar quando o ônus seria incumbido a cada parte e quando este não poderia ser distribuído, o CPC/15 traz como grande inovação a pormenorização dos casos em que o juiz terá a liberdade de distribuir o ônus.
Esta nova tendência já pode ser notada em julgados recentes, justamente em decorrência da referida liberdade do magistrado em relativizar as circunstâncias de inversão do ônus da prova, principalmente em se tratando de matéria consumerista. Neste caso, o art. 373 do CPC/15 atua em conjunção com o art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) (3), que versa sobre os requisitos para a inversão do ônus da prova em casos de consumo, quais sejam: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor.
Assim, apesar da existência de norma que expressamente permite a inversão do ônus em benefício do consumidor, o que vem sido combatido é a cultura onde os consumidores creem que estão liberados do encargo de provar o fato constitutivo do seu direito ou a crença de que a inversão será promovida de maneira automática.
Mesmo diante da caracterização da relação de consumo, continua o ônus da prova submetido, em regra, aos incisos II e III do art. 373 do CPC/15. A distribuição ou inversão do ônus só ocorrerá durante o curso do processo quando o juiz verificar a dificuldade do consumidor de provar o fato constitutivo de seu direito ou não possuir condições técnicas para tanto, sendo necessário, também, que tal fato seja revestido de verossimilhança.
Em recentes julgados, os tribunais têm decidido pelo indeferimento do requerimento de inversão ônus da prova quando não preenchidos os requisitos acima. Podemos citar, por exemplo, recente julgado da primeira instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que entendeu da seguinte forma:
“O pedido de inversão do ônus da prova deve ser analisado com base em fatos que fujam do comum ou que ofendam de maneira grave a defesa das partes. A condição de consumidor não autoriza de forma absoluta a inversão do ônus da prova. Considerando a natureza do conflito, a obrigação de provar os fatos alegados cabe a parte autora, na forma prevista no artigo 373 do CPC. Assim, indefiro a inversão do ônus da prova, por entender que não se encontra configurada a hipossuficiência do autor em provar o alegado na inicial, sendo possível ao caso em tela, a produção da prova documental.” (4)
Na mesma linha foi o entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que julgou o recurso de apelação, indicando que a inversão não é absoluta:
“Nada obstante, cumpre ressalvar que a inversão do ônus da prova, nas modalidades ope legis ou ope judicis, não é absoluta, porquanto as presunções dela decorrentes, para que aplicáveis, devem vir escoradas por um indício mínimo de existência do elemento de cujo ônus probatório o consumidor se pretende ver liberado, exigindo-se, sempre, a presença de verossimilhança das alegações, sob pena de se acolher teses infundadas, em desprestígio à lealdade e à boa-fé.” (5)
Assim, percebe-se que há verdadeira tendência ao fim do pensamento automático de inversão do ônus em favor do consumidor e um grande avanço na jurisprudência brasileira. Dessa forma, há agora o entendimento que somente diante da análise do caso concreto e de suas especificidades é que será operada a inversão da prova, havendo, então, harmonia entre o CPC/15 e o CDC em matéria de inversão do ônus probatório.
Mais informações podem ser obtidas com a equipe de direito consumerista do VLF Advogados.
Izabella Cunha
Advogada da Equipe de Contencioso Consumerista do VLF Advogados
(1) THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol I. 58 Ed. Rio de Janeiro: Forense.
(2) Art. 373. O ônus da prova incumbe:
(...)
§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2o A decisão prevista no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
(3) Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
(4) 3ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, Proc. 0247366-24.2015.8.19.0001, j. 20/09/2018. Disponível em:
<http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2015.001.223869-9>. Acesso em: 25/09/2018.
(5) TJSC, Apelação n. 0013445-98.2010.8.24.0064, de São José, rel. Des. Edemar Gruber, j. 08-09-2016