A constitucionalidade da terceirização de atividade-fim
Lorena Lara
A chamada terceirização de mão de obra tornou-se prática comumente utilizada pelas empresas no País para diminuir custos com pessoal e possibilitar que algumas atividades empresariais fossem desempenhadas por prestadoras de serviço especializadas.
Ocorre que muitas empresas passaram a terceirizar não apenas atividades acessórias, mas também funções inseridas no âmbito de suas atividades-fim, Tratam-se de atividades intrinsecamente relacionadas ao seu objeto social e objetivo principal do negócio, como, por exemplo, a construção de edificações, no caso de empresas de construção civil, ou a extração de minério para comercialização, no caso de empresas mineradoras.
Nenhum dispositivo do ordenamento jamais vedou a terceirização da atividade-fim. Na verdade, há, inclusive, dispositivo constitucional que expressamente prevê uma hipótese de terceirização da atividade-fim: o artigo 197 da Constituição da República(1), autoriza expressamente que os serviços de saúde (uma atividade tipicamente estatal) sejam executados diretamente ou através de terceiros.
Apesar disso, o Tribunal Superior do Trabalho (“TST”), com o objetivo de regulamentar prática amplamente utilizada pelas empresas, editou a Súmula 331 (2) em maio de 2011, estipulando a ilicitude da terceirização de mão de obra. Com esse entendimento, estabeleceu-se a formação automática do vínculo empregatício do trabalhador diretamente com o tomador, nos casos em que os serviços contratados estivessem inseridos na atividade-fim da contratante, bem como a responsabilidade subsidiária do tomador em eventual inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador.
Tal súmula, no entanto, não teve o condão de pacificar todo o entendimento jurisprudencial ou doutrinário acerca da questão, uma vez que, inexistindo dispositivo legal que proibia a terceirização de atividade-fim, questionou-se a legitimidade do TST para criar verdadeira norma restritiva. Essa questão foi suscitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 324, que fundamentava a inconstitucionalidade da referida súmula em alegada violação aos preceitos constitucionais fundamentais da legalidade, da livre iniciativa e da valorização do trabalho.
Após anos de questionamentos, foi promulgada, no dia 31.03.2017, a Lei n. 13.429/17 [3], que alterou e acrescentou diversos dispositivos à Lei n. 6.019/74 (4), e previu em seu artigo 10º que “qualquer que seja o ramo da empresa tomadora de serviços, não existe vínculo de emprego entre ela e os trabalhadores contratados pelas empresas de trabalho temporário.” No mesmo sentido, a Lei n. 13.467/2017 [5], a chamada “Reforma Trabalhista”, trouxe, em seu artigo segundo, várias alterações à Lei n. 6.019/1974, prevendo expressamente a possibilidade de terceirização da atividade-fim (6).
Apesar de tais permissivos legais, os tribunais pátrios continuaram a aplicar aos contratos de prestação de serviços firmados antes da entrada em vigor de tais leis a proibição de terceirização da atividade-fim prevista na Súmula n. 331/TST. Dentre os argumentos utilizados para afastar a aplicação do texto da lei estava a alegação de que tais previsões legais não poderiam retroagir no tempo, sendo válidas tão somente nos casos de contratos celebrados já sob a égide da nova legislação.
Sendo assim, foi de inegável importância a apreciação do tema pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”), que, no dia 30/08/18, julgou a ADPF n. 324 e o Recurso Extraordinário em Repercussão Geral n. 958252, que versavam sobre a possibilidade de terceirização em todas as atividades da empresa.
Por maioria de 7 votos contra 4 contrários, o Tribunal julgou que é lícita a terceirização em todas as etapas do processo produtivo, sejam elas em atividades-meio ou fim, entendendo, assim, pela inconstitucionalidade da Súmula 331 (7). Do julgamento do Recurso Extraordinário n. 958.252, a propósito, foi firmada a seguinte tese de repercussão geral:
É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante, revelando-se inconstitucionais os incisos I, III, IV e VI da Súmula 331 do TST.
No entendimento da maioria, a terceirização não precariza direitos trabalhistas e o princípio constitucional da livre concorrência não permite a imposição de restrições para as empresas decidirem a forma de contratação de seus funcionários. Os ministros destacaram, ainda, que, atualmente, não é mais possível fazer uma diferenciação entre atividade-fim e atividade-meio.
O ministro Celso de Mello não viu impedimento constitucional para a terceirização. “Considero plenamente legítima, sob a estrita perspectiva da ordem constitucional, a terceirização das atividades-fim das empresas em geral, notadamente porque a Constituição ao proclamar a livre iniciativa assegura a liberdade aos agentes econômicos”, disse.
Última a votar, Cármen Lúcia seguiu a mesma linha: “Terceirização não é causa da precarização do trabalho nem viola por si a dignidade do trabalho, e se isso acontecer há o Judiciário para impedir esses abusos”.
Relator da ação de descumprimento de preceito fundamental, o ministro Luís Roberto Barroso sustentou que a sociedade evoluiu e que a legislação deve acompanhar essa transformação. O ministro disse, ainda, que os direitos dos trabalhadores não se encontravam em pauta, pois são os mesmos para todos, independentemente da forma de contratação.
Rosa Weber, por sua vez, foi enfática nas críticas à terceirização da atividade-fim. Segundo a magistrada, o Estado Democrático de Direito se assenta na sólida proteção ao trabalho e liberar a terceirização total seria prejudicial. “A permissividade não gera emprego, só determina se o posto de trabalho é direto e protegido ou se é precário e terceirizado”, disse.
Independente da visão a respeito do tema, se há precarização das condições de trabalho ou aumento das ofertas de emprego, é indiscutível que a terceirização é um fato social, e o legislador, após longo período de omissão legislativa, promulgou duas leis permitindo-a inclusive na atividade-fim e prevendo a responsabilidade subsidiária da tomadora pelo pagamento dos encargos trabalhistas em caso de eventual descumprimento pelo empregador.
Não cabia, portanto, ao Judiciário, como havia feito o TST, criar vedações ao exercício da livre iniciativa, mormente quando desprovidas de qualquer amparo legal, em clara afronta ao princípio da legalidade. Assim, decidiu com acerto o STF ao reconhecer a constitucionalidade da terceirização da atividade-fim.
Como desdobramento do posicionamento do STF, tem-se que os contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor das Leis n. 13.467/2017 e n. 13.429/2017 poderiam, licitamente, versar sobre a prestação de serviços, pela contratada, de atividades inseridas na atividade-fim da contratante.
Nesse mesmo sentido, as modificações realizadas pelas chamadas “Lei da Terceirização” e “Reforma Trabalhista” passam a ser, indiretamente, referendadas pelo STF.
É necessário, porém, ressaltar que os ministros afirmaram que a tese não alcança processos que já transitaram em julgado. Dessa forma, as partes interessadas em aplicar o entendimento do STF deverão ajuizar ações rescisórias, para tentar desconstituir as sentenças que, com fulcro na Súmula 331/TST, reconheceram a ilicitude da terceirização e a formação de vínculo de emprego entre o trabalhador terceirizado e a empresa tomadora de seus serviços.
Importante ressaltar, ainda, que, apesar de estar devidamente regulamentada, e agora com repercussão geral reconhecida pelo STF, a licitude da terceirização da atividade-fim não afasta a possibilidade de reconhecimento de vínculo diretamente com o tomador de serviço, caso haja a comprovação judicial da existência de pessoalidade e subordinação, com fulcro nos artigos 2º e 3º da CLT(8), já que a empresa tomadora contrata serviços e não a pessoa do prestador de serviços.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe trabalhista do VLF Advogados.
Lorena Lara
Advogada da equipe trabalhista do VLF Advogados
(1) Art. 197 da CR/88. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
(2) Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.
(3) Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm>.
(4) Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6019.htm>.
(5) Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13467.htm>.
(6) Art. 4º-A, “caput”, lei 6.019/74 (redação dada ela lei 13.467/17). Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.
Art. 5º-A, “caput”, lei 6.019/74 (redação dada ela lei 13.467/17). Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal.
(7) Conforme notícia veiculada na página do STF disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388429>. Acesso em: 22/09/2018.
(8) Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. (...)
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.