Possibilidade de complementação do prazo de usucapião no curso da demanda judicial
Luciana Netto
Segundo lição básica de Sílvio de Salvo Venosa, a posse prolongada pode conduzir à aquisição da propriedade, se presentes determinados requisitos estabelecidos em lei (1).
Com efeito, a possibilidade de a posse continuada gerar a propriedade se justifica pela própria função social da propriedade, favorecendo aquele que utiliza utilmente de determinado bem, em detrimento daquele que deixa de utilizá-lo ou não se insurgindo contra quem o faça, como se dono fosse, durante prolongado período de tempo.
Daí a razão de o Código Civil colocar a usucapião com modo de adquirir a propriedade imóvel ao lado da transcrição ou registro, sendo que, o decurso do lapso temporal para efeito de se deduzir a pretensão ad usucapionem, é requisito insuperável.
Contudo, o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), manifestado no julgamento do Recurso Especial n. 1.361.226 (2), cuja relatoria é do eminente Ministro Villas Bôas Cueva, tende a flexibilizar o cômputo do prazo para aquisição de imóvel pela usucapião.
Em tal caso, os autores postularam o reconhecimento da usucapião extraordinária, com base no art. 1.238 do CC/2002 (3), aduzindo que possuem a posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel por mais de 17 (dezessete) anos. A parte requerida foi citada por edital e a contestação foi apresentada pela Defensoria Pública.
O magistrado de primeiro grau julgou improcedente o pedido, sob o fundamento de que, a partir da aplicação do direito intertemporal, o caso se submete ao art. 550 do CC/1916 (4) e, por conseguinte, o prazo para a usucapião extraordinária é de 20 (vinte) anos e não de 15 (quinze). Nesse sentido, concluiu-se que, na data da propositura da demanda, a parte autora não demonstrou ter a posse sobre o imóvel pelo prazo igual ou superior a 20 (vinte) anos.
Interposta a apelação, o Tribunal de Justiça confirmou a sentença de improcedência do pedido, concluindo que faltou unicamente o requisito temporal (decurso do prazo de 20 anos), estando presentes todos os demais.
Buscando a apreciação do STJ, os autores interpuseram recurso especial, alegando, em suma, que é possível complementar o prazo de usucapião no curso da demanda judicial, haja vista que a legislação processual civil autoriza o magistrado a examinar fatos ocorridos após a instauração da demanda. Na instância especial, duas pessoas alegando serem as legítimas proprietárias do imóvel ingressaram no feito como assistentes do réu e postularam o desprovimento do recurso especial.
No julgamento, o ministro relator do apelo nobre, Villas Bôas Cueva, acolheu a alegação dos recorrentes sob o fundamento de que “[...] é dever do magistrado levar em consideração fato constitutivo ou extintivo do direito ocorrido após a propositura da ação, podendo fazê-lo independentemente de provocação das partes”, conforme o artigo 462 do Código de Processo Civil de 1973 (5). O relator ressaltou ainda que à época da prolação da sentença, o prazo de 20 anos já havia se completado.
O que se verifica é que o principal fundamento utilizado pela terceira turma do STJ para a afastar a improcedência do pedido inicial se fundamenta no princípio da economia processual, pois, segundo o Relator, “[...] evita-se que o autor proponha nova ação para obter o direito que já poderia ter sido reconhecido se o Poder Judiciário apreciasse eventual fato constitutivo superveniente.” (6)
O relator destacou ainda que a apresentação de contestação não tem o condão de impedir o transcurso do lapso temporal, porque tal manifestação não tem a capacidade de exprimir a resistência à posse, mas somente a discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião.
Apesar de nesse caso o proprietário do imóvel não ter comparecido pessoalmente aos autos para resistir ao pedido de usucapião do imóvel, o ministro colacionou em seu voto outras decisões do STJ que indicam que a contestação, por si só, não é apta a caracterizar oposição à posse, o que indica que a conclusão não seria diferente se a manifestação tivesse sido apresentada por advogado designado pelo proprietário.
Apesar do julgamento não ter ocorrido na sistemática dos recursos repetitivos, a existência de outras decisões do STJ nesse sentido reforça a necessidade de os jurisdicionados se atentarem ao entendimento de que a contestação não representa oposição à posse.
O inteiro teor do acórdão pode ser lido aqui.
Mais informações sobre o caso podem ser obtidas com a equipe do contencioso cível do VLF Advogados.
Luciana Netto
Advogada da equipe de contencioso cível e empresarial estratégico do VLF Advogados.
(1) VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 4.ed, São Paulo: Atlas, 2004, p. 209.
(2) STJ, REsp 1.361.226/MG. Disponível em: <ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1717029&num_registro=201300012072&data=20180809&formato=PDF>. Acesso em: 26/09/2018.
(3) Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
(4) Art. 550. Aquele que, por vinte anos sem interrupção, nem oposição, possuir como seu, um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio independentemente de título de boa fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para a transcrição no registro de imóveis.
(5) Art. 462. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.
(6) STJ, REsp 1.361.226/MG. Decisão disponível em: <ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1717029&num_registro=201300012072&data=20180809&formato=PDF>. Acesso em 26/09/2018.