Responsabilidade civil por transporte rodoviário de cargas com excesso de peso: um problema de prova
Bruna R. Colombarolli e Érika Villar
O transporte rodoviário de cargas com excesso de peso é, a um só tempo, qualificado como infração administrativa e ilícito civil. Como o ordenamento jurídico brasileiro adota, como regra, o sistema de independência das esferas de responsabilização, as empresas que transportam cargas com excesso de peso são, com frequência, responsabilizadas nas esferas civil e administrativa.
Todavia, a despeito da autonomia das instâncias, com frequência, as autuações administrativas são utilizadas, na esfera da responsabilidade civil, como meio de prova da prática do ato ilícito, subvertendo-se garantias constitucionais das empresas investigadas.
O transporte de veículos com excesso de peso é qualificado como infração administrativa, nos moldes do art. 231, V e X, e art. 257 do Código de Trânsito Brasileiro (1) . Nesse sentido, a verificação da prática infracional e a aplicação respectiva sanção administrativa constituem manifestação do poder de polícia da Administração Pública brasileira.
Uma vez identificada a prática de tal conduta, a empresa (embarcador e/ou transportador) é autuada pelos órgãos de trânsito competentes, podendo ser sancionada por meio da aplicação de multas administrativas e/ou determinação do transbordo da carga excedente.
O devido processo administrativo sancionador é instaurado por meio de expedição de auto de infração, sendo assegurado direito ao contraditório e à ampla defesa ao autuado. Além disso, a aplicação da multa pode ser questionada nas esferas administrativas por meio da interposição de recursos.
Já a responsabilidade civil das empresas que, supostamente, transportam cargas com excesso de peso é, em geral, promovida pelo Ministério Público por meio da instauração de Inquérito Civil e posterior ajuizamento de Ação Civil Pública. Segundo o entendimento do Ministério Público, ao realizar o transporte de cargas com excesso de peso, as empresas causam danos a malha viária, o que impõe o dever de indenização dos cofres públicos a título de dano material e moral coletivos.
Em tais hipóteses, a responsabilização civil das empresas pressupõe a configuração dos seguintes elementos: conduta, nexo de causalidade e dano. Portanto, deve fica demonstrado, nos autos, que, ao transportar carga acima dos limites da empresa, a empresa deu causa direta a danos específicos na rodovia. Ocorre, contudo, que, na maioria das vezes, a conduta da empresa não é individualizada e o dano é simplesmente presumindo, o que viola, por completo, as premissas do sistema de responsabilidade civil.
Um dos pontos mais problemáticos reside no fato de que, no âmbito de Inquéritos Civis e Ações Civis Públicas, as imputações da prática do ilícito civil fundamentam-se, na maioria das vezes, apenas nas autuações administrativas expedidas contra a empresa pelos órgãos administrativos responsáveis pela fiscalização das vias públicas. Nesse sentido, busca-se utilizar os autos de infração administrativa como meio de prova na esfera civil de responsabilização. Há subjacente a tal estratégia a equivocada premissa de que a simples existência da autuação administrativa permitiria supor como verdades processuais a autoria e a materialidade do ilícito e a própria existência do dano.
Um dos principais equívocos de tal entendimento está ligado à falta de reconhecimento da natureza provisória das decisões administrativas sancionadoras.
Nesse contexto, é importante ponderar que o ato administrativo que imputa a infração administrativa ao particular e aplica a sanção representa aplicação provisória do direito. Logo, diferente do que sucede na esfera jurisdicional, a aplicação do direito pela Administração Pública não tem o condão de fazer verdadeira coisa julgada. A chamada coisa julgada administrativa é tão-somente a impossibilidade de alteração de determinada situação jurídica na via administrativa. Desse modo, a decisão administrativa sancionadora pode ser desconstruída na esfera judicial.
A rigor, as autuações consubstanciam decisões meramente provisórias, uma vez que os princípios da inafastabilidade do Poder Judiciários e da presunção da inocência permitem que empresa autuada busque, na esfera jurisdicional, a anulação da autuação, tendo em vista a existência de vícios formais, prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública, ausência de materialidade e/ou autoria, inexistência do elemento subjetivo, entre outras teses de defesa.
Ademais, não se pode olvidar que o ordenamento jurídico brasileiro optou pelo sistema de autonomia ou independência das esferas de responsabilização – administrativa, penal e civil. Desse modo, a decisão tomada no âmbito de uma esfera de responsabilização não repercute nas demais, salvo nos casos expressamente previstos em lei. Entretanto, norma alguma do ordenamento jurídico brasileiro prevê que eventual autuação administrativa importa na configuração de responsabilidade civil.
Com base em premissas, fica evidente a impossibilidade de emprego das autuações administrativas como provas da autoria e/ou da materialidade do ilícito civil e tampouco do dano.
Bruna R. Colombarolli
Advogada da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
Érika Villar
Advogada da Equipe de Direito Tributário do VLF Advogados
(1) Art. 231. Transitar com o veículo:
[...]
V - com excesso de peso, admitido percentual de tolerância quando aferido por equipamento, na forma a ser estabelecida pelo CONTRAN:
Infração - média;
Penalidade - multa acrescida a cada duzentos quilogramas ou fração de excesso de peso apurado, constante na seguinte tabela:
a) até 600 kg (seiscentos quilogramas) - R$ 5,32 (cinco reais e trinta e dois centavos);
b) de 601 (seiscentos e um) a 800 kg (oitocentos quilogramas) - R$ 10,64 (dez reais e sessenta e quatro centavos);
c) de 801 (oitocentos e um) a 1.000 kg (mil quilogramas) - R$ 21,28 (vinte e um reais e vinte e oito centavos);
d) de 1.001 (mil e um) a 3.000 kg (três mil quilogramas) - R$ 31,92 (trinta e um reais e noventa e dois centavos);
e) de 3.001 (três mil e um) a 5.000 kg (cinco mil quilogramas) - R$ 42,56 (quarenta e dois reais e cinquenta e seis centavos);
f) acima de 5.001 kg (cinco mil e um quilogramas) - R$ 53,20 (cinquenta e três reais e vinte centavos);
Medida administrativa - retenção do veículo e transbordo da carga excedente;
[...]
X - excedendo a capacidade máxima de tração:
Infração - de média a gravíssima, a depender da relação entre o excesso de peso apurado e a capacidade máxima de tração, a ser regulamentada pelo CONTRAN;
Penalidade - multa;
Medida Administrativa - retenção do veículo e transbordo de carga excedente.
(2) Art. 257. As penalidades serão impostas ao condutor, ao proprietário do veículo, ao embarcador e ao transportador, salvo os casos de descumprimento de obrigações e deveres impostos a pessoas físicas ou jurídicas expressamente mencionados neste Código.
[...]
§ 4º O embarcador é responsável pela infração relativa ao transporte de carga com excesso de peso nos eixos ou no peso bruto total, quando simultaneamente for o único remetente da carga e o peso declarado na nota fiscal, fatura ou manifesto for inferior àquele aferido.
§ 5º O transportador é o responsável pela infração relativa ao transporte de carga com excesso de peso nos eixos ou quando a carga proveniente de mais de um embarcador ultrapassar o peso bruto total.
§ 6º O transportador e o embarcador são solidariamente responsáveis pela infração relativa ao excesso de peso bruto total, se o peso declarado na nota fiscal, fatura ou manifesto for superior ao limite legal. [...]