Declaração de ME e EPP em licitações e sanções administrativas: transformações da jurisprudência do TCU
Maria Tereza Fonseca Dias
A simples declaração de licitante como microempresa (“ME”) ou empresa de pequeno porte (“EPP”) em licitação, quando não estiver enquadrada nos valores definidos na Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006 (“Estatuto das Micro e Pequenas Empresas”), não pode ser considerada fraude ou intenção de frustrar o certame.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (“TCU”) sobre o tema avança rumo ao reconhecimento da razoabilidade e da proporcionalidade na aplicação de penalidades às licitantes. Será preciso reconhecer, no entanto, a diferença entre “erro” e “má-fé”, não podendo a mera declaração ser tratada como dado objetivo para fins de aplicação de penalidade.
A participação de ME e EPP em processos licitatórios, desde a edição do Estatuto das Micro e Pequenas Empresas, tem sido festejada pela doutrina como política de ação afirmativa no âmbito das compras públicas. Isso, pois, além de haver o fomento do mercado interno, há a valorização do segmento de empresas que mais gera empregos diretos.
Há ainda controvérsias sobre os impactos econômicos da medida nas aquisições públicas – se positivos ou negativos –, notadamente pela falta de estudos empíricos e dados estatísticos sobre o tema. Fato é que têm sido realizadas, cada vez mais, licitações com a participação de ME e EPP, seja na forma de licitação exclusiva; seja com percentual reservado (cota) ou com a previsão de subcontratação a essas empresas, em conformidade com o art. 49 do Estatuto das Micro e Pequenas Empresas.
Os benefícios concedidos pelo Estatuto das Micro e Pequenas Empresas às ME e EPP vão desde a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista (art. 42); passando pela concessão de prazos mais alargados para apresentação de documentação (art. 42, § 2º) até a preferência na contratação em caso de empate ficto de preços (art. 44).
Tendo havido previsão no Edital do Certame, o empate ficto dar-se-á em duas hipóteses: (i) quando as propostas apresentadas pelas ME e EPP sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada (art. 44, § 1º); ou (ii) sendo até 5% superiores na modalidade de pregão (art. 44, § 2º). O empate ficto estabelece uma preferência para a contratação da ME ou EPP mais bem classificada no certame (art. 45), desde que ela apresente proposta de preço inferior àquela considerada vencedora (art. 45, inciso I). Do contrário, serão convocadas as demais ME e EPP participantes ou a licitante vencedora, caso nenhuma delas apresente proposta inferior (art. 45, incisos II, III e § 1º).
Para gozar desses benefícios concedidos às ME e EPP, notadamente no procedimento do pregão – em que o julgamento das propostas é feito antes da habilitação – os Editais exigem, conforme art. 13, § 2º, do Decreto n. 8.538/15, que a empresa declare que cumpre os requisitos legais para a qualificação como ME ou EPP, sob as penas da lei. A declaração torna a empresa apta, portanto, a usufruir do tratamento favorecido descrito anteriormente.
As penas para esse tipo de infração estão previstas nos artigos 87 e 90 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993 (“Lei de Licitações e Contratos Administrativos”):
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Há, ainda, quem cogite a aplicação das sanções previstas no art. 6º da Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013 (“Lei Anticorrupção”):
I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação;
II - publicação extraordinária da decisão condenatória.
As ME e EPP estão mais vulneráveis à aplicação dessas sanções do que as demais empresas. A aplicação de multas, a suspensão em participar de licitações e a declaração de inidoneidade costumam importar na derrocada econômica das ME e EPP que cometeram equívocos no preenchimento da declaração na licitação, resultando no encerramento das suas atividades e a retirada de um player do mercado.
No tocante à apresentação de declaração equivocada e à aplicação das sanções, parte da jurisprudência do TCU tem afirmado que:
A mera participação de licitante como ME ou EPP, amparada por declaração com conteúdo falso, configura fraude à licitação e enseja a aplicação das penalidades da lei, não sendo necessário, para a configuração do ilícito, que a autora da fraude obtenha a vantagem esperada.(1)
Trata-se de uma tentativa de objetivação da conduta, que, reservada vênia, não atende aos princípios constitucionais, notadamente os do devido processo administrativo, da presunção de inocência, da proporcionalidade e razoabilidade.
Do ponto de vista fático, é necessário considerar, em primeiro lugar, as dificuldades operacionais e técnicas das ME e EPP, que muitas vezes encontram obstáculos fáticos e econômicos para treinar e instruir sua equipe interna e de colaboradores para a participação nos certames. Há que se considerar, ainda, a volatilidade das mudanças de enquadramento das sociedades como ME e EPP, que podem perder facilmente essa condição, sem que os seus funcionários tenham informações atualizadas. Combinados, esses dois fatores podem levar a empresa a cometer erro no preenchimento da declaração, que é conduta diversa da “má-fé” na obtenção das vantagens do regime das ME e EPP nas aquisições públicas.
Assim, para a aplicação das penalidades decorrentes desse fato, deverá ser apurado em processo administrativo próprio: as especificidades do caso concreto, o resultado do certame e a obtenção de efetiva vantagem pela licitante, notadamente de caráter econômico.
Há que se considerar, ainda, o critério da proporcionalidade (art. 2º, inciso VI, da Lei n. 9784/99), segundo o qual, nos processos administrativos, serão observados, entre outros princípios, a adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.
Nesse sentido, observa-se na jurisprudência do TCU, uma evolução importante na aplicação do princípio da razoabilidade e proporcionalidade quando da declaração de inidoneidade de empresas que apresentam declaração falsa no tocante a sua condição de ME e EPP em licitações.
O Tribunal Pleno do TCU já reconhece – diversamente daquela posição objetiva - que para declarar a inidoneidade da licitante, é necessário que e empresa “[...] obtenha a contratação ou se beneficie com alguns dos benefícios competitivos da LC n. 123/2006.” (2).
A jurisprudência mais recente do TCU, entretanto, passou a levar em consideração as condições específicas do caso concreto e o efetivo proveito que as empresas auferiram quando de sua participação no certame na condição de ME ou EPP.
Assim, exige-se a utilização dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade para o estabelecimento da dosimetria da sanção a ser aplicada.
Vejam-se os seguintes julgados do TCU e suas respectivas conclusões:
A ausência de obtenção de vantagem pela empresa, no entanto, pode ser considerada como atenuante no juízo da dosimetria da pena a ser aplicada, em função das circunstâncias do caso concreto.
[...] há, de fato, vários precedentes no âmbito deste Tribunal, a exemplo dos Acórdãos n. s 1.797/2014, 740/2014 e 1.853/2014, todos do Plenário, nos quais, em situações similares, houve o abrandamento da pena para as empresas que não tiveram usufruído indevidamente de benefícios com a apresentação de declaração fraudulenta.(3)
[...] o não recebimento de recursos públicos minimiza as consequências do ato praticado e permite a diminuição do prazo de inidoneidade para participar de licitação anteriormente declarada. [...] Considerando que, no caso em exame, a interessada não pode usufruir do benefício pretendido porque não venceu o certame, o que minimiza as consequências do ato praticado, é apropriado adequar a dosimetria da pena, reduzindo-a para diferenciá-la daquelas situações equivocadamente mencionadas como paradigmas. (4)
dada a baixíssima materialidade dos procedimentos licitatórios exclusivos para ME ou EPP em que participou e ganhou, R$ 385,83 e R$ 763,00 respectivamente em 2007 e 2008, representando percentual inferior a 0,01% do total auferido pela firma em licitações com órgãos públicos, é suficiente alertar a empresa de que a repetição da infração ensejará a declaração de sua inidoniedade, impossibilitando que contrate com o Poder Público por até 5 anos. (5)
Em que pese mostrar-se em constante transformação, percebe-se que a referida jurisprudência ainda não reconhece e não distingue as situações de erro e dolo e acaba punindo o erro – ainda que comprovado pela parte interessada - com a mesma penalidade com que se pune a conduta volitiva intencional em cometer ato ilícito e usufruir de vantagem indevida nas contratações destinadas às ME e EPP.
Assim, se a empresa foi inabilitada; se não firmou contrato com a administração pública; se não recebeu recursos públicos; se não frustrou o caráter competitivo do certame; se a contratação pública não se efetivou, na hipótese de formação de Ata de Registro de Preços; ou seja, se não houve benefício concreto, dano ao patrimônio público ou lesão de interesses da Administração ou de terceiros, tudo isso há que ser considerado na aplicação de eventual sanção e até mesmo no reconhecimento de sua inaplicabilidade ao caso concreto.
No caso da aplicação das sanções da Lei Anticorrupção, o cuidado deve ser redobrado, haja vista que o disposto no art. 5º, IV, “a”, da Lei n. 12.846/13 - frustrar ou fraudar o caráter competitivo de procedimento licitatório, mediante “qualquer expediente” – pode gerar a aplicação de penalidades de maneira açodada, desproporcional e desarrazoada, baseando-se em qualquer ato que possa ter ocorrido na licitação, in caso, na declaração claramente preenchida de forma incorreta e sem a intenção de causar dano ou obter vantagem ilícita.
Será preciso reconhecer, pois, a diferença entre “erro” e “má-fé”, não podendo a mera declaração ser tratada como dado objetivo para fins de aplicação de penalidade a MEs e EPPs.
Maria Tereza Fonseca Dias
Consultora e Coordenadora da Área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Acórdão n. 1702/2017 – Plenário - Data da sessão: 09/08/2017; Relator: Walton Alencar Rodrigues. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1702%2520ANOACORDAO%253A2017/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 de janeiro de 2019.
(2) Acórdão n. 1797/2014 – Plenário. Data da sessão: 09/07/2014; Relator: Aroldo Cedraz. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1797%2520ANOACORDAO%253A2014/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 de janeiro de 2019.
(3) Acórdão n. 1677/2018 – Plenário; Data da sessão: 25/07/2018; Relator: Augusto Nardes. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1677%2520ANOACORDAO%253A2018/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 de janeiro de 2019.
(4) (Acórdão n. 836/2014 – Plenário; Data da sessão: 02/04/2014; Relator: Ana Arraes). Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A836%2520ANOACORDAO%253A2014/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 de janeiro de 2019.
(5) Acórdão n. 2847/2010 – Plenário; Data da sessão: 27/10/2010; Relator: Walton Alencar Rodrigues. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A2847%2520ANOACORDAO%253A2010/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 de janeiro de 2019.