Frete mínimo e insegurança jurídica: as decisões contraditórias do STF
Maria Tereza Fonseca Dias
A Política Nacional de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas foi instituída pela Medida Provisória n. 832, de 27 de maio de 2018 (“MP 832/18”), em decorrência do movimento conhecido como “greve dos caminhoneiros”, ocorrido no mês de maio de 2018.
A MP 832/18 determinou, em seu art. 5º, §3º, que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”), no prazo de 5 (cinco) dias de sua expedição, elaborasse tabela com os preços mínimos para o frete. Visando atender a referida norma, a ANTT publicou a Resolução n. 5.820 (“Res. 5820/18”), de 30 de maio de 2018, para estabelecer a metodologia de cálculo e publicar a tabela com preços vinculantes, referentes ao quilômetro rodado na realização de fretes por eixo carregado.
A Res. 5820/18 foi editada de acordo com os requisitos estabelecidos pela MP 832/18, cujo texto era bastante simplista quanto aos requisitos para a criação do chamado “frete mínimo”. Em 8 de agosto de 2018, a MP 832/18 foi convertida na Lei n. 13.703 (“Lei 13.703/18”), estabelecendo, em seu art. 6º, requisitos mais detalhados para a fixação dos pisos mínimos para os fretes, quais sejam:
a) tecnicidade;
b) ampla publicidade; e
c) participação dos representantes dos embarcadores, dos contratantes dos fretes, das cooperativas de transporte de cargas, dos sindicatos de empresas de transportes e de transportadores autônomos de cargas.
Assim, por ter sido elaborada antes da conversão da MP 832/18 em lei, a Res. 5820/18 não atendeu a esses requisitos, sendo certo que a Lei 13.703/18 determinou em seu art. 5º que a ANTT publicasse resolução baseada na nova metodologia, com a tabela para o cálculo dos valores mínimos para o frete.
Entretanto, conforme mostra o cronograma constante da página da ANTT na internet, o novo regramento somente será editado em julho de 2019 (1).
Por não ter sido editada nova resolução em conformidade com a Lei 13.703/18, a Res. 5820/18 foi tacitamente revogada, vez que carece dos requisitos técnicos e procedimentais para a fixação dos pisos mínimos para os fretes previstos no citado art. 6º. Além disso, ela também perdeu a sua vigência por contrariar o art. 5º, §1º, da Lei 13.703/18, que determina a publicação dos pisos e da planilha até os dias 20 de janeiro e 20 de julho de cada ano, sendo certo que a referida Resolução da ANTT foi editada em 30 de maio de 2018.
Em 7 de junho de 2018, a Associação do Transporte Rodoviário de Carga do Brasil propôs a ADI n. 5956 TP/DF (“ADI 5956”) (2), com pedido de medida cautelar, tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade da MP 832/18.
No mérito, a referida ADI discute, em síntese, que: (i) a política de preços mínimos vinculantes derruba a atividade econômica exercida pelas empresas de transporte que atuam no segmento de granéis, as quais oportunizam o recrutamento dos serviços dos motoristas autônomos em larga escala; (ii) o tabelamento de preço fere a economia de mercado e abre perigoso precedente para que outros grupos de pressão coloquem em risco a segurança do país; (iii) o paternalismo estatal fez com que os motoristas autônomos não se preparassem para enfrentar os custos reais da atividade; (iv) o governo não adotou medidas alternativas para a solução do problema verificado no mercado de fretes, como fiscalização, incentivo e planejamento da atividade econômica. Em sede de medida cautelar, postulou a suspensão da eficácia da MP 832/2018 e da Res. 5820/18.
No Supremo Tribunal Federal (“STF”), a partir da ADI 5956, foram proferidas decisões contraditórias, que claramente afrontam o princípio da segurança jurídica, dificultando a regulação do setor, o transporte de cargas no país e a logística das empresas de diversos setores econômicos.
Quatro foram as decisões monocráticas proferidas pelo Ministro-Relator, Luiz Fux, na ADI 5956.
Na primeira decisão, em 14 de junho de 2018, o Ministro Relator determinou a suspensão de todos processos judiciais, individuais ou coletivos, em curso nas demais instâncias do Judiciário que envolvam a inconstitucionalidade ou suspensão de eficácia da MP 832/2018 e da Res. 5820/18 da ANTT. Para justificar sua decisão, Fux alegou que a medida seria necessária para que “[...] se alcance uma solução jurídica uniforme e estável quanto à validade das normas questionadas, uma vez que as ações nas instâncias inferiores podem gerar comandos conflitantes sobre a controvérsia em análise no STF.” (3)
Posteriormente, em 6 de dezembro de 2018, o Ministro Fux deferiu medida cautelar para suspender a aplicação das medidas administrativas, coercitivas e punitivas previstas no art. 5º, §6º, da Lei 13.703/18 e, consequentemente, os efeitos da Resolução n. 5.833/2018 da ANTT, que estabelece a aplicação de multas em caso de inobservância da tabela de preços para o frete da Res. 5820/18, bem como das indenizações respectivas (4).
Em 12 de dezembro de 2018, seis dias após a segunda decisão, o Ministro Fux revogou a liminar anteriormente concedida até que o Plenário do STF viesse a se manifestar sobre o mérito da ADI (5), em atendimento à pedido de reconsideração formulado pela União. A partir dessa decisão, novamente passou a valer o tabelamento do frete.
Inobstante as decisões da referida ADI, diversas entidades de classe e usuários de transporte de carga ingressaram em juízo e conseguiram obter liminares em diversas varas da Justiça Federal de 1ª Instância para que a tabela do frete mínimo supostamente vigente não fosse aplicada. A alegação central apresentada foi que a ANTT não fez publicar Resolução que atendesse os critérios da Lei n. 13.703/2018 e que a Res. 5820/18 estaria revogada por não atender aos critérios da referida lei para estabelecer os valores do frete mínimo.
Essas ações, portanto, não discutem a inconstitucionalidade da MP 832/2018, mas a revogação e a ilegalidade da Res. 5820/18. Além disso, considerando ser distinto o objeto das ações propostas na Justiça Federal, daquele da ADI em tramitação no STF, a Justiça Federal entendeu que a suspensão determinada pelo Ministro-Relator, em 14 de junho de 2018, dirigia-se a discussões sobre a inconstitucionalidade da MP 832/2018.
Considerando a edição da Lei 13.703/18 após o ajuizamento da referida ADI 5956, passou-se a entender que a decisão de suspensão dos processos judiciais das instâncias inferiores só poderia alcançar situações jurídicas previamente existentes, não sendo possível que alcancem discussões sobre norma ainda não existente à época de sua prolação. As empresas que possuíam liminares proferidas pela Justiça Federal mais uma vez não estavam obrigadas a cumprir as regras do tabelamento de frete.
Contudo, no último dia 11 de fevereiro de 2019, nova decisão foi publicada na ADI 5956 (6). Nela, o Ministro Luiz Fux determinou a suspensão de todos os processos judiciais em curso no território nacional, em todas as instâncias, que envolvam a aplicação da Lei 13.703/18, da MP 832/18, da Res. 5820/18 da ANTT ou de outros atos normativos editados em decorrência dessas normas, até o julgamento definitivo do mérito da ADI 5956, respeitada a decisão monocrática proferida em 12 de dezembro de 2018.
Esse cenário tem gerado grande insegurança nos usuários do transporte rodoviário de cargas, sobretudo quanto à possibilidade de a ANTT impor sanções aos tomadores do serviço por fretamentos realizados durante a vigência da liminar, sem observância da Res. 5820/18 da ANTT.
Em regra, a decisão que revoga liminar tem efeitos ex tunc, conforme indica a Súmula 405 do STF:
Súmula 405 - Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária.
Esse entendimento baseia-se no caráter precário e provisório das medidas cautelares antecipatórias. Assim, os efeitos ex tunc da decisão que revoga a liminar seria uma decorrência natural do regime das medidas cautelares.
Todavia, o próprio STF vem excepcionando esse entendimento, quando a decisão liminar foi expedida com base na decisão dominante da época, em homenagem ao princípio da tutela da confiança legítima. Veja-se:
Ocorre, contudo, que esta Corte vem reconhecendo que a revogação da liminar opera-se, excepcionalmente, com efeitos ex nunc nos mandados de segurança denegados com base no entendimento resultante do RE 596.663-RG, mas que tiveram a medida precária concedida anteriormente com fundamento na jurisprudência vigente à época, favorável aos impetrantes. Proteção da confiança legítima. Nesse sentido: MS 25.430 (Rel. Min. Eros Graus, redator para o acórdão Min. Edson Fachin) e MS 30.556 AgR (Rel. Min. Rosa Weber). [MS 34.350 AgR, rel. min. Roberto Barroso, 1ª T, j. 7-11-2017, DJE de 17-11-2017] (7)
Além disso, no meio doutrinário, já existem autores que defendem que, no controle de legalidade dos atos administrativos, é possível realizar a chamada modulação de efeitos, com base na aplicação analógica do art. 27 da Lei n. 9.868/1999(8). Todavia, esse entendimento é ainda recente e não encontra aderência jurisprudencial.
Verifica-se, portanto, que o entendimento dominante é no sentido de que a revogação da liminar encerraria efeitos retroativos, possibilitando que a ANTT multe as empresas como base nos registros do Código Identificador da Operação de Transporte (“CIOT”).
As liminares deferidas em primeira instância pela Justiça Federal, aliadas à provável aplicação retroativa de suas revogações e a consequente possibilidade de autuações pela ANTT, geram um cenário de desconforto e insegurança para diversos agentes econômicos. De outro lado, a última decisão proferida na ADI 5956 ampliou o seu objeto de análise, alcançando norma editada posteriormente à sua propositura.
Ao fim e ao cabo o princípio da segurança jurídica restou violado, haja vista as idas e vindas das decisões proferidas pelo STF, sendo certo que esse cenário se prolongará até o efetivo julgamento da ADI 5956.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com a equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados.
Maria Tereza Fonseca Dias
Consultora e Coordenadora da Área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Cronograma para nova resolução sobre o frete mínimo. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/cargas/arquivos_old/Tabelas_de_Precos_Minimos_do_Transporte_Rodoviario_de_Cargas.html>. Acesso em 21/02/2019.
(2) Andamentos da ADI nº 5956/DF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5481962>. Acesso em 21/02/2019.
(3) 1º Decisão na ADI nº 5956/DF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314613673&ext=.pdf>. Acesso em 21/02/2019.
(4) 2º Decisão na ADI nº 5956/DF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339206737&ext=.pdf>. Acesso em 21/02/2019.
(5) 3º Decisão na ADI nº 5956/DF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339248334&ext=.pdf>. Acesso em 21/02/2019.
(6) 4º Decisão na ADI nº 5956/DF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339492202&ext=.pdf>. Acesso em 21/02/2019.
(7) ARE 1102944, Relator Min. Edson Fachin, julgado em 10/08/2018, publicado em 16/08/2018. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14069667>. Acesso em: 21/02/2019.
(8) SILVEIRA, Marilda. Segurança Jurídica Regulação, Ato Mudança, Transição e Motivação. Belo Horizonte: Fórum, 2017.