Governança corporativa: uma constante universal
Laís Sacchetto e Pedro Ernesto Rocha
Nas últimas décadas, a governança corporativa tornou-se um dos temas mais discutidos no mundo empresarial. A matéria, que antes despertava pouca atenção, ganhou relevância com o advento de escândalos financeiros envolvendo grandes companhias – tais como a WorldCom e a Enron – provocados, em grande medida, por conflitos de interesse entre os executivos e acionistas. Soma-se a isso o reconhecimento dos benefícios advindos da maior transparência na gestão empresarial, em especial para atrair capital e fontes de financiamento, o que culminou na efervescência atual em torno do assunto (1).
Em que pese ser utilizado em grandes companhias de todo o mundo, não há um único conceito para o termo corporate governance. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (“IBGC”), por exemplo, propõe que
“Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas.” (2)
Por sua vez, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) apresenta uma definição voltada para o escopo da governança corporativa: “um conjunto de práticas que tem por finalidade otimizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes interessadas” (3).
Em verdade, qualquer que seja a conceituação que se adote, o que se verifica é que a noção de governança corporativa está ligada à ideia de gestão ética, transparente e proba, com respeito às diversas partes interessadas na companhia. Assim, de forma geral, fala-se de um sistema de gestão que objetiva aperfeiçoar a estrutura de uma companhia, mediante a regulação dos seus órgãos administrativos e do comportamento das pessoas que neles atuam, bem como no constante aprimoramento do relacionamento e da atuação de stakeholders (ou seja, sócios, auditores internos e externos, empregados, investidores etc.). Sobre este ponto, ressalta-se, as práticas de governança devem visar ao bem da empresa, e não à distinção ou ao favorecimento de quaisquer dos grupos específicos (4).
Para melhor compreender a abrangência e a finalidade da aplicação das normas de governança corporativa, é necessário analisar os princípios ou valores que norteiam as boas práticas de governança. Destaca-se, no entanto, que a maneira como tais valores são implementados varia em decorrência das diferentes culturas empresariais e arcabouços regulatórios. Não obstante essa distinção, o Principles of Corporate Governance (5), publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OECD”), pode ser considerado uma referência mundial de práticas relevantes para o bom funcionamento de um sistema de gestão.
No caso brasileiro, apesar da diversidade de códigos que tratam do assunto (6), é possível notar a constância de quatro princípios básicos, os quais seguem abaixo descritos.
(i) Transparência: consiste na divulgação voluntária de informações relevantes para as partes interessadas, independentemente de terem sua divulgação imposta por lei ou regulamento, de forma a possibilitar que todos tenham conhecimento da verdadeira situação da sociedade.
(ii) Equidade no tratamento dos acionistas: pressupõe o tratamento justo e isonômico, sem discriminações e em igualdade de condições, dos sócios e demais partes interessadas.
(iii) Prestação de contas (accountability): determina que os agentes de governança – isto é, sócios, administradores, conselheiros fiscais, auditores, conselho de administração, conselho fiscal, etc. – devem prestar contas de sua atuação, responsabilizando-se integralmente pelas consequências de seus atos e omissões.
(iv) Responsabilidade Corporativa: prega que os agentes de governança devem incorporar considerações de ordem social e ambiental na definição dos negócios, de forma a zelar pela perenidade das organizações empresariais.
Da leitura dos princípios em comento, duas conclusões são possíveis: primeiro, tanto a transparência quanto a prestação de contas tornam a forma de atuação da empresa mais clara, auxiliando na decisão de investimento. Segundo, a equidade de tratamento aos acionistas atrai mais investidores, o que gera, por consequência, liquidez.
Vale observar que o IBGC, em seu Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, aponta que esses princípios se aplicam a qualquer tipo de organização, independentemente de porte, natureza jurídica ou tipo de controle, e são a base para uma boa governança (7).
A relação entre a adoção de boas práticas de governança corporativa, o desempenho e o valor de mercado das companhias tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, especialmente após a segregação do mercado da BM&FBovespa que passou a incluir, além do mercado tradicional, os Níveis Diferenciados de Governança Corporativa (“NDGB”) (8). Tratam-se de segmentos de listagem destinados à negociação de ações de companhias que se comprometeram a adotar práticas de transparência e governança corporativa.
Nesse sentido, já se demonstrou que as companhias listadas em um dos segmentos dos NDGC, ou seja, aquelas que mais se aproximam dos princípios da equidade, transparência, ética e responsabilidade social, apresentam maior valor de mercado do que as companhias listadas no mercado tradicional (9). Da mesma forma, aquelas companhias também tem uma rentabilidade média superior às companhias do mercado tradicional, evidenciando que quanto maior nível de transparência melhor é o desempenho dessas companhias (10).
Sobre o tema, a doutrina ainda aponta que
“A criação dos Níveis Diferenciados de Governança Corporativa e do Novo Mercado trouxe mais segurança aos investidores que aplicaram seus recursos em empresas que adotaram melhores práticas de governança corporativa. Por outro lado, as empresas também se beneficiam, pois suas ações tendem a ser mais procuradas em razão de suas boas práticas de gestão”. (11)
A título de curiosidade, vale anotar, ainda, que apesar do termo governança corporativa ser frequentemente vinculado às sociedades anônimas, a aplicabilidade dessas práticas certamente não se restringe a esse tipo societário. O intuito da governança corporativa é universal e constante, e sua aplicabilidade poderá se dar por meio de variadas ferramentas adaptáveis a qualquer contexto econômico, societário e jurídico.
Espera-se que, seguindo a tendência mundial, as organizações brasileiras de todos os portes passem a adotar cada vez mais práticas de governança corporativa. Se bem implementado, esse sistema de gestão seguramente pode contribuir para melhorar a imagem e o valor das sociedades perante o mercado.
Laís Sacchetto
Estagiária da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) ANTONELLI, R. A.; PORTULHAK, H.; SCHERER, L. M.; CLEMENTE, A. Impacto da Adesão aos Níveis Diferenciados de Governança Corporativa da BM&FBovespa no Risco de Companhias Reguladas. Revista de Contabilidade do Mestrado em Ciências Contábeis da UERJ, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 93-109, maio/ago., 2018.
(2) IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. IBGC – São Paulo, 5. Ed, 108 p., 2015, p. 20.
(3) Cartilha de Recomendações da CVM sobre Governança Corporativa, publicada pela Comissão de Valores Mobiliários em junho de 2002. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0001/3935.pdf>. Acesso em: 21 de fevereiro de 2019.
(4) SANTOS, A. M. Reflexões sobre a Governança Corporativa no Brasil. In Revista de Direito Mercantil-Industrial, Econômico e Fincanceiro, São Paulo, v. 42, n. 130, p. 180-206, abr./jun., 2003, p. 182
(5) OECD – Organization for Economic Co-Operation and Development. OECD Principles of Corporate Governance. Paris, 1999.
(6) Por exemplo, Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, publicado pelo IBGC; Código Brasileiro de Governança Corporativa – Companhias Abertas, publicado pelo Grupo de Trabalho Interagentes; Código PREVI de Melhores Práticas de Governança Corporativa, publicado pela Diretoria de Participações da Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil; Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa da FUNCEF, publicado pela Fundação dos Economiários Federais; Regulamento de Listagem do Novo Mercado, publicado pela BM%FBovespa; Recomendações da CVM sobre Governança Corporativa, publicado pela CVM, etc.
(7) IBGC, obra citada, p. 20.
(8) Atualmente, além do mercado tradicional, há 5 segmentos especiais de listagem da B3: Nível 1, Nível 2, Novo Mercado, Bovespa Mais, Bovespa Mais Nível 2. Mais informações sobre cada um podem ser acessadas aqui.
(9) CAIXE, D. F., KRAUTER, E. The Relation between corporate governance and market value: mitigating endogeneity Problems. Brazilian Business Review, v. 11, n. 1, p. 90-110, 2014. No mesmo sentido: ROSSONI, L., MACHADO-DA-SILVA, C. Legitimidade, governança corporativa e desempenho: análise das empresas da BM&FBovespa. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 53, n. 3, p. 272-289, maio/jun. 2013.
(10) BRESSAN, V. G. F.; BRESSAN, A. A. Existe diferença entre a rentabilidade das ações das empresas que adotam governança corporativa com relação às empresas do mercado tradicional? Organizações Rurais e Agroindustriais, Lavras, v. 10, n. 2, p. 250-263, abr./jun. 2008.
(11) RIBEIRO, M. N. Aspectos Jurídicos da Governança Corporativa. São Paulo: Quartier Latin, 190 p., 2007, p. 59.