STF reafirma a responsabilidade do Estado pelas atividades de cartórios, mas divergências quanto ao regime jurídico persistem
Maria Tereza Fonseca Dias
Ao negar provimento ao Recurso Extraordinário (“RE”) 842846, no último dia 27 de fevereiro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (“STF”), por maioria de votos e com repercussão geral reconhecida, reafirmou jurisprudência da Corte segundo a qual o Estado tem responsabilidade civil objetiva para reparar danos causados a terceiros por tabeliães e oficiais de registro no exercício de suas funções cartoriais. Também ficou decidido que o Estado deve ajuizar ação de regresso contra o responsável pelo dano, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.
Na origem, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina havia decidido que a responsabilidade do Estado é objetiva, por ser o delegante do serviço notarial e registral, com base no art. 37, §6º da Constituição da República de 1988 (“CR/88”). O Estado de Santa Catarina recorreu desta decisão, afirmando que a pessoa física do tabelião ou do oficial de registro é quem deveria responder pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da atividade notarial, com base no que determina o caput do art. 236 do mesmo diploma.
O caso concreto julgado, conforme noticiado pelo STF (1), envolveu uma ação ordinária com pedido de indenização feito por um cidadão em decorrência de erro do cartório na emissão da certidão de óbito de sua esposa.
Em que pese a maioria dos votos dos Ministros tenha reconhecido a responsabilidade objetiva do Estado, houve divergência quanto ao regime jurídico (público ou privado) do serviço notarial e registral em alguns votos.
A corrente majoritária, cujo conteúdo orientou o voto, entendeu pelo caráter publicístico do regime de responsabilidade civil, que implica na responsabilidade objetiva do Estado, com possibilidade do exercício de direito de regresso em caso de dolo ou culpa, à luz do art. 37, §6º, da CR/88.
O voto do ministro Celso de Mello, por exemplo, destacou que o exame do Texto Constitucional permite concluir pela estatalidade dos serviços notariais e registrais e pelo reconhecimento de que os serventuários, incumbidos do desempenho de funções de ordem pública, qualificam-se como típicos agentes estatais. Segundo o Ministro: "Eles só podem exercer tais atividades por delegação do Poder Público, estão sujeitos à permanente fiscalização do Judiciário e dependem, para o ingresso na atividade, de prévia aprovação em concurso público.".
Este voto seguiu o do Ministro-Relator, Luiz Fux, que destacou, além da responsabilidade objetiva do Estado, ser assegurado ao Estado o direito de regresso em caso de dolo ou culpa.
Acompanharam o voto do relator a ministra Rosa Weber, para quem "A responsabilidade do Estado é direta, primária e solidária"; a ministra Cármen Lúcia, que ressaltou que essa tese é a que melhor protege o cidadão, vez que não caberá a ele a incumbência de comprovar a culpa ou dolo do agente; o Ministro Ricardo Lewandowski; o ministro Gilmar Mendes; e o ministro Dias Toffoli, presidente do STF.
De maneira diversa, reconhecendo não a integralidade do regime publicístico da atividade notarial e registral, mas que esses serviços são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, nos termos do art. 236 da CR/88, foram proferidos três votos, com consequências diversas derivadas dessa premissa.
O voto do ministro Edson Fachin entendeu que o ato notarial de registro que provoca dano a terceiro gera ao Estado responsabilidade objetiva, mas apenas subsidiária. Por essa razão, poderiam ser simultaneamente demandados na ação tanto o tabelião quanto o Estado.
O ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, entendeu que além da regra geral sobre responsabilização do Estado, prevista no artigo 37, §6º, da CR/88, aplica-se a do art. 236, de forma que, tanto a responsabilização do Estado quanto a dos tabeliães e registradores deve ser subjetiva.
O ministro Marco Aurélio, contrariando as posições anteriores, entendeu que o cartório deverá responder pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da atividade notarial, pois os serviços cartoriais são exercidos em caráter privado. A seu ver, a responsabilidade do Estado é apenas subjetiva, no caso de falha do Poder Judiciário em sua função fiscalizadora da atividade cartorial.
Após os debates e as posições divergentes apresentadas, firmou-se a seguinte tese de repercussão geral: "O Estado responde objetivamente pelos atos dos tabeliões registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa".
Maria Tereza Fonseca Dias
Consultora e Coordenadora da Área de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) Notícia do STF quanto ao julgamento do RE 842846. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=404603> Acesso em: 18 de março de 2019.
(2) Acompanhamento processual do RE 842846. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4650160&numeroProcesso=842846&classeProcesso=RE&numeroTema=777> Acesso em: 18 de março de 2019.