Publicado recentemente, CDC/PE contém normas passíveis de questionamento
Luciana Netto e Mariana Cavalieri
O Estado do Pernambuco foi pioneiro e publicou, em 16 de janeiro de 2019, o primeiro Código de Defesa do Consumidor Estadual (“CDC/PE”) – Lei nº 16.559 (1). Suas normas são aplicáveis às relações de consumo em que a prestação do serviço ou o fornecimento do produto ocorrer no âmbito do Estado do Pernambuco, estendendo-se a todos os fornecedores, independente do ramo ou do setor econômico da atividade.
De um modo geral, o CDC/PE ratifica as normas federais dispostas na Lei nº 8.078/90 (“CDC”) (2). Contudo, o CDC/PE acabou trazendo norma que contém obrigações que extrapolam o CDC, o que é vedado pelo artigo 24 da Constituição Federal de 1988 (“CF/88”), que dispõe sobre legislação concorrente (3).
O artigo 174 do CDC/PE dispõe que:
As montadoras, importadoras e concessionárias de veículos automotores estão obrigadas a fornecer carro reserva similar ao do cliente, no caso de o automóvel ficar parado por mais de 10 (dez) dias úteis por falta de peças originais ou por qualquer outra impossibilidade de realização do serviço.
A obrigação contida no referido dispositivo legal é exatamente a mesma prevista na Lei n. 15.304/2014 (“Lei”) (4), também do Estado de Pernambuco, a qual foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5158 (“ADI”), proposta em 3 de setembro de 2014, pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (“ANFAVEA”), a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (“FENEBRAVE”) e a Associação Brasileira das Empresas Importadoras e Fabricantes de Veículos Automotores (“ABEIFA”).
Os Autores da ADI fundamentaram o pedido em suposta violação aos artigos 1º, IV; 5º; 24, V e VII; 170, IV; e 174, todos da CF/88, sob a assertiva de que a Lei “[...] extrapolou a competência legislativa concorrente dos estados, ao criar ônus estadual excessivo e descabido às montadoras, concessionárias ou importadoras de veículos, sob o pretenso fundamento de proteção ao consumidor.” (5)
Por ocasião do julgamento da ADI, o Supremo Tribunal Federal (“STF”), declarou a inconstitucionalidade da Lei, na sua integralidade, por vício formal, ao analisar os limites da atuação dos Estados membros no âmbito da legislação concorrente.
Como principal fundamento, o Ministro Relator Roberto Barroso ponderou que, conquanto não haja qualquer óbice à possibilidade de os Estados legislarem sobre matérias que envolvam relação de consumo, há limites e balizas a serem respeitados:
Da interpretação sistemática dos arts. 1º, IV, 5º, 24, V e VIII, 170, IV e 174, todos da Constituição Federal, extraem-se balizas impostas ao legislador estadual, quando da elaboração de normas consumeristas. São, assim, vedadas extrapolações de competência concorrente e violações aos princípios da isonomia, livre iniciativa e da livre concorrência, sobretudo no que concerne à criação de ônus estadual a fornecedores, como verificado no exemplo da Lei nº 15.304/2014 do Estado de Pernambuco. (6)
Da leitura do voto, extrai-se que é vedado aos estados legislar vastamente sobre consumo, devendo respeitar o CDC, enquanto lei federal norteadora.
A vedação é justa e visa a manutenção de igualdade entre os consumidores pernambucanos e aqueles do restante do país, especialmente porque não há peculiaridade local que justifique o tratamento diferenciado. O Ministro Relator ainda destacou a ocorrência de violação a princípios expressos da CF/88, a saber, isonomia, livre iniciativa e livre concorrência.
Assim, por analogia, considerando que o art. 174 do CDC/PE traz a mesma obrigação contida na Lei, declarada inconstitucional pelo STF, é consectário lógico e legal a inconstitucionalidade da norma.
Embora seja louvável a atuação do Estado do Pernambuco, que claramente visa a proteção dos seus consumidores, a efetividade prática do CDC/PE será verificada apenas no dia-a-dia, notadamente se se considerar que o texto legal tem um claro viés punitivo ao fornecedor, com previsão de multas escalonadas e graduadas de acordo com a gravidade da infração, que podem alcançar a vultosa quantia de R$9.000.000,00.
Portanto, a aplicação do CDC/PE exigirá atenção especial por parte dos atuantes do Direito, a fim de evitar um desequilíbrio na relação consumerista, desta vez, em desfavor dos fornecedores de produtos e serviços.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas com as equipes cível estratégico e de direito consumerista do VLF Advogados.
Luciana Netto
Advogada da Equipe de Contencioso Cível e Empresarial Estratégico do VLF Advogados.
Mariana Cavalieri
Advogada da Equipe de Direito do Consumidor do VLF Advogados
(1) Código de Defesa do Consumidor do Estado de Pernambuco. Disponível em: <http://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?id=41601&tipo>.
(2) Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>.
(3) Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[...]
V - produção e consumo;
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>.
(4) Lei nº 15.304/2014 do Estado de Pernambuco. Disponível em: <https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=271102>.
(5) ADI n. 5158. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4627655>.
(6) Acórdão ADI n. 5158. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339552531&ext=.pdf>