MP da Liberdade Econômica: muito além da desburocratização de startups
Christian Lopes e Maria Clara Mota
No último dia 30 de abril, foi editada a Medida Provisória nº 881/2019 (“MP 881/2019”), conhecida como “MP da Liberdade Econômica”. Segundo Paulo Uebel, secretário de Desburocratização e Gestão do Ministério da Economia, a medida visa minimizar a intervenção do Estado na iniciativa privada.
Conforme previsto na Constituição Brasileira, uma Medida Provisória é um ato unilateral do Poder Executivo, que possui força de lei e será avaliado pelo Congresso Nacional no futuro. As medidas ficam vigentes pelo prazo de 60 (sessenta) dias, podendo ser prorrogadas por igual período. Caso o Congresso não analise a matéria, a Medida Provisória perde seus efeitos, mas conserva as relações jurídicas constituídas durante o período de vigência.
Especificamente naquilo que toca às mudanças trazidas pela MP da Liberdade Econômica, a mídia destacou a dispensa de requisitos burocráticos de alvarás para atividades econômicas de baixo risco, a dispensa de autorização prévia para testes de produtos e serviços que não representem perigo e liberação da atividade econômica tacitamente, caso a administração pública não se manifeste no prazo fixado. Entretanto, a Medida Provisória tem abrangência bem maior e, caso convertida em Lei, trará mudanças significativas em várias áreas do Direito.
Os principais pontos da MP
A espinha dorsal da MP 881/2019 é o art. 3º, que estabelece o que se chamou de “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. Em seus dez incisos, traz regras e princípios que poderão ser invocados tanto pelo cidadão que desejar empreender em face da administração pública quanto por pessoas em suas relações negociais.
Quanto ao cidadão que deseja empreender, destacam-se três pontos. Primeiro, a dispensa a atos públicos de liberação da atividade econômica de baixo risco que dependa de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, que tem como consequência a simplificação do processo de abertura de um negócio. Segundo, o direito a receber tratamento isonômico de órgãos quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica – isso significa que o entendimento de um fiscal ou outro funcionário público com relação a determinado cidadão deve ser o mesmo com relação a outras pessoas em situação semelhante, criando uma vinculação de entendimentos administrativos, o que é de fundamental importância para maior segurança jurídica ao empreendedor. Por último, a medida garante que o particular receberá um prazo para a análise de seu pedido. Caso o prazo seja concluído sem que a autoridade competente se manifeste, os atos serão considerados aprovados.
Dentre os princípios que afetam as relações privadas, destaca-se o reforço à autonomia da vontade, à vinculação à palavra dada e à presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, valores que foram diluídos a partir da Constituição de 1988 e, mais acentuadamente, do Código Civil de 2002. Nesse sentido, a MP ressalta, ainda, em seu art. 3º, VIII, que as estipulações das partes prevalecerão com relação às normas legais nas relações empresariais. A definição do alcance desse dispositivo trará desafios interpretativos, pois, levado ao extremo, todas as normas passariam a ser facultativas nos chamados negócios jurídicos empresariais.
As modificações do Código Civil
A MP 881/2019 altera as disposições preliminares que regulam as relações contratuais. O art. 421 do Código Civil é modificado a fim de limitar a intervenção do Estado nas relações privadas. De acordo com a nova redação, a liberdade contratual observará, além da função social do contrato, o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica contida na MP 881/2019, destacado no parágrafo anterior.
Além disso, as hipóteses de revisão contratual pelo Estado só poderão ocorrer de forma excepcional. Essa previsão pode afetar a aplicação da revisão contratual por onerosidade excessiva, regulada nos arts. 478 e seguintes do Código Civil, de modo a limitar quais casos se enquadrariam na ideia de desequilíbrio econômico contratual. Todavia, como não há especificação legal, caberá à doutrina e à jurisprudência determinar um parâmetro. No direito privado internacional, sugere-se uma modificação de pelo menos 150% no preço (1).
Ainda com relação a esse ponto, a MP adicionou o art. 480-A, que determina que as partes possam pactuar parâmetros objetivos para a revisão ou resolução contratual. Isso significa que as partes podem, entre outros, estabelecer quais modificações no custo da prestação ou no valor do objeto da prestação acarretariam em desequilíbrio contratual.
A MP ampliou a aplicação da regra de interpretação contra proferentem, segundo a qual, em caso de ambiguidade, uma cláusula deve ser interpretada em desfavor à parte que a elaborou. Antes, a aplicação da regra era limitada a contratos de adesão, uma modalidade que não deixa margem à negociação de termos contratuais, limitando-se o contratante a aceitar as condições do contratado, como em serviços de TV por assinatura, telefonia e semelhantes. Agora, essa se estende a outras modalidades contratuais, de acordo com o parágrafo único do art. 423 do Código Civil.
A regra contra proferentem é uma máxima de interpretação geralmente aceita no Direito brasileiro e de outros países; no entanto, ela é sempre aplicada em conjunto com outros métodos de interpretação para se buscar a real intenção das partes, conforme determina o art. 112 do Código Civil. A previsão isolada dessa máxima no Código Civil poderá fazer com que contratos sejam interpretados sempre contra aquele que estipulou, mesmo que o uso conjunto dos demais métodos possa indicar que outra interpretação é a que mais se coaduna com a real intenção das partes (art. 112) e a boa-fé (art. 113).
Ademais, foi adicionada a presunção de paridade entre os contratantes em relações interempresariais por meio do art. 480-B. Isso significa que, para fins legais, as duas empresas possuem as mesmas condições de negociar um contrato, não sendo uma hipossuficiente perante a outra – o que poderia gerar uma interpretação em favor da parte menos favorecida.
A responsabilidade da pessoa jurídica
Em linha com os preceitos da Declaração acima referida, a MP 881/2019 altera dispositivos do Código Civil e da Lei de Falência, reforçando a limitação de responsabilidade da pessoa jurídica, também bastante desgastada na prática, pela fixação de critérios mais pormenorizados para a desconsideração da personalidade e para a extensão dos efeitos da falência a sócios, administradores e sociedades do mesmo grupo econômico.
Estabelece, ainda, a possibilidade de que as partes estabeleçam critérios para a revisão judicial de contratos, na hipótese de eventos extraordinários, e vincula a controversa função social do contrato à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, conferindo um norte mais seguro para sua interpretação.
Modificações na atuação da Fazenda Nacional em juízo
Por fim, destaca-se a ampliação das possibilidades em que a Fazenda Nacional fica dispensada de contestar, oferecer contrarrazões ou interpor recursos em casos em que o indivíduo tem razão e a União muito provavelmente sairia perdedora no processo. O alargamento dessas hipóteses deve ensejar não apenas para o tratamento mais justo do cidadão relativamente à administração pública, como também para a redução do número de ações repetitivas no Poder Judiciário, contribuindo para sua racionalização.
Para mais informações ou esclarecimentos a respeito do tema, entre em contato com a equipe de Consultoria do VLF Advogados.
Christian Lopes
Advogado e sócio da área de Consultoria do VLF Advogados
Maria Clara Mota
Estagiária da equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) SCHTWENZER, Ingeborg. Force majeure and hardship in international sales contracts. Victoria University of Wellington Law Review, 39, 2009, pp. 709-725, p. 717.