Medida Provisória nº 881 cria a figura da sociedade limitada unipessoal, mas sem adentrar nos aspectos técnicos do tema
Laís Sacchetto e Pedro Ernesto
Publicada no último dia 30 de abril, a Medida Provisória nº 881 (“MP 881/2019”) (1), popularmente intitulada “MP da Liberdade Econômica”, trouxe diversas inovações no âmbito do Direito de Empresa, dentre as quais destaca-se, para os fins desse artigo, a inclusão de um novo revestimento jurídico para empreendimentos (um novo “modelo societário”): a sociedade limitada unipessoal.
Por meio da introdução do parágrafo único ao artigo 1.052 do Código Civil, a nova norma instituiu a figura da sociedade limitada unipessoal no ordenamento jurídico brasileiro, ao determinar que “a sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social".
A necessidade de criar um instrumento jurídico que permitisse a limitação da responsabilidade do empreendedor individual, de forma a proteger o seu patrimônio dos riscos inerentes à atividade empresária, já vem sendo discutida há décadas no meio empresarial e jurídico. Contudo, apesar de ser figura comum em vários ordenamentos jurídicos no mundo, a exemplo de diversos países da União Europeia (2), no Brasil, a sociedade unipessoal sempre foi contrária ao princípio da pluralidade de sócios, previsto no Código Civil (3) e até então fundamental para a constituição de uma sociedade limitada.
Em curta síntese, duas eram as opções existentes, até o advento da MP 881/2019, para aquele que quisesse exercer a atividade empresarial sozinho com limitação de responsabilidade: (i) o chamado patrimônio de afetação, hipótese em que o empresário destaca parte do seu patrimônio para servir de garantia da atividade empresarial, o que é objeto de muitas polêmicas (3); e (ii) a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (“EIRELI”), criada com a Lei nº 12.441/2011, na qual a responsabilidade do empresário está limitada “nos mesmos moldes das sociedades limitadas”.
Além dessas, podem ser citadas ainda outras duas formas de unipessoalidade previstas no ordenamento jurídico brasileiro: a sociedade unipessoal acidental, isto é, aquela em que a sociedade, ora plurissocietária, se torna temporariamente unipessoal em virtude da morte, saída ou exclusão do outro sócio; e a subsidiária integral prevista no artigo 251 da Lei 6.404/1976, que é uma sociedade anônima constituída unicamente por outra sociedade brasileira.
A sociedade limitada unipessoal vem, portanto, criar um mecanismo acessível àquele indivíduo que deseja empreender individualmente com limitação de sua responsabilidade e que não consegue constituir EIRELI, seja em virtude do alto capital social mínimo exigido pelo artigo 980-A do Código Civil ou por ser titular de outra pessoa jurídica dessa modalidade (situação que é vedada pelo §2º deste mesmo artigo). Contudo, a MP 881/2019 introduz essa possibilidade sem adentrar nos aspectos técnicos de constituição e funcionamento desse “modelo societário”, deixando alguns questionamentos, por ora, sem resposta.
A título de exemplo, podem ser citados alguns pontos, que já têm sido objeto de debates em eventos acadêmicos, a exemplo da série de palestras denominada “A MP da Liberdade Econômica e o Direito Empresarial”, promovida em 22 de maio de 2019, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Neste ensejo, não ficou claro se a sociedade limitada unipessoal será um novo “modelo societário”, totalmente autônomo, ou uma variação da sociedade limitada plurissocietária. Apesar de estar prevista no capítulo do Código Civil que trata das sociedades limitadas, a dinâmica desse modelo – no que toca às deliberações, aprovação de contas etc. – seria completamente distinta daquela que há nas sociedades com pluralidade de sócios.
Questiona-se, ainda, se a sociedade limitada com um único sócio poderá ter natureza simples ou empresária, a depender do objeto social, ou se a natureza dessas sociedades será predefinida – a exemplo do que ocorre com as sociedades anônimas, conforme artigo 982, parágrafo único do Código Civil.
Também é incerto se, na eventualidade da morte, saída ou exclusão do outro sócio, uma sociedade limitada plurissocietária se transformaria (ou se converteria), automaticamente, em sociedade limitada unipessoal, ou se o sócio remanescente teria a faculdade de se transformar/converter em EIRELI. De se destacar, inclusive, a íntima relação desse ponto com o primeiro levantado, na medida em que se a sociedade limitada com mais de um sócio e a unipessoal se tratarem de um único “modelo societário”, não há que se falar em transformação ou conversão.
Outra questão relevante diz respeito à situação dos incapazes, pois o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) já autorizou que menores sejam sócios únicos de EIRELI (5), mas a mesma posição não necessariamente será aplicada às sociedades limitadas unipessoais.
Há, ainda, questionamentos quanto à formação do nome empresarial da sociedade limitada unipessoal. Esse aspecto, considerado de grande relevância por ser o nome empresarial o elemento que demonstra claramente o modelo societário adotado para o exercício da atividade empresária, não foi regulado na MP 881/2019 e, em princípio, nem poderá sê-lo em eventual regulamentação feita pelo DREI, já que se trata de matéria que só pode ser regulada por lei.
Por fim, há dúvidas quanto às formalidades das quais deveriam se revestir as deliberações nesse modelo, pois, em verdade, não haveria deliberação, mas, sim, mera aplicação do que for determinado pelo único sócio. Nesse ponto, o ideal seria, como boa prática de governança, que todos os atos sejam documentados, de forma a permitir o afastamento de eventuais alegações de fraude.
Por todo exposto, resta óbvio que a criação das sociedades limitadas unipessoais tem o condão de viabilizar e facilitar a constituição de pessoas jurídicas no país, fomentando a atividade econômica. Contudo, como aqui se demonstrou, caso a medida provisória realmente seja convertida em lei, há ainda alguns aspectos que carecem de regulamentação, seja por outras leis, seja por instrução normativa do DREI.
Para mais informações ou esclarecimentos a respeito do tema, entre em contato com a equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
Laís Sacchetto
Estagiária da área Consultiva do VLF Advogados
Pedro Ernesto
Advogado da área Consultiva do VLF Advogados
(1) MP 881, de 30 de abril de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm>. Acesso em: 22 de maio de 2019.
(2) ABREU, M. L. L. A Tradição Europeia em Sociedade Unipessoal: Comparação com o Brasil. Rev. Fac. Direito UFMG, n. 63, pp. 491-527, jul./dez. 2013.
(3) Verifica-se claramente a referência à pluralidade de sócios no art. 981 do Código Civil, e também no artigo 1.033, que determinam, respectivamente: “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e partilha, entre si, dos resultados”; e “Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: [...] IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias; [...]”.
(4) A afetação se caracteriza pela separação de bens e direitos do patrimônio comum, criando dois patrimônios distintos. Contudo, no âmbito do Direito Privado, a noção de um único sujeito com uma vida social e outra empresarial que não se confundem é polêmica. Somado a isso, a burocracia dele decorrente faz com que seja pouco utilizado na realização de seus empreendimentos.
(5) IN DREI nº 55, de 8 de março de 2019. Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/images/REPOSITORIO/SEMPE/DREI/INs_EM_VIGOR/IN_DREI_55_2019.pdf>. Acesso em: 23 de maio de 2019.